quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Pigmalião - George Bernard Shaw

Gosto muito de obras teatrais, particularmente Shakespeare. Só mesmo o Brasil ainda não possui um gênio indiscutível no Teatro. A Inglaterra tem Shakespeare, a frança tem Dumas, a Alemanha tem Hölderlin e Brecht, Portugal tem Gil Vicente. Nós temos Qorpo Santo e Antônio José (o Judeu), que são duas obras inacabadas, e alguns bons dramaturgos modernos, mas nos falta um "clássico genial" do gênero.

Divaguei e não cheguei em Bernard Shaw, que é um grande dramaturgo irlandês, que nasceu em uma época em que os irlandeses escreviam melhor que os ingleses.

Esse livro possui duas coisas que admiro: a intertextualidade desde o título e um personagem inusitado. Pigmalião é uma figura mitológica que teria sido um artesão que, ao construir uma estátua tão perfeita, se apaixona pela própria obra. Mas a história contada no livro não é a de Pigmalião mas de Higgins, um professor de fonética extremamente descortês e hilário.

A comédia se passa quando Higgins aceita uma aposta de transformar uma florista, Eliza Dolittle, em uma dama da realeza mudando sua fala Cockney. O aprendizado, o pai de Eliza, o tratamento "VIP" dado por Higgins são alguns dos pontos de maior graça da peça que, apesar do humor, possui muito de crítica social. Shaw é assumidamente um autor didático, e sua obra possui sempre uma finalidade de modificação do pensamento social. Apesar de tudo, a obra é grandiosa (não literalmente, já que é um texto pequeno) e popularíssima.

A tradução de Millor Fernandes é um exemplo de tradução. Millor já havia mostrado suas qualidades ao verter para o português brilhantemente A Megera Domada de Shakespeare, e esse trabalho com o texto de Shaw, de muito maior dificuldade, mostrou-se incrível. É muito difícil uma tradução de comédia manter a graça do texto fonte, já que a maior parte do humor está no trabalho com a linguagem, e não na narrativa. O trabalho de tradução de Millor é esplêndido.

Minha parte favorita é quando Eliza disse que não gosta do modo como Higgins trata-a, e compara com o do Coronel Pickening, que trata uma florista como se fosse duquesa, e Higgins, para rebater, afirma que possui o mesmo comportamento, tratando uma duquesa como se fosse uma florista.

O filme possui uma famosa adaptação cinematográfica (com o título de My Fair Lady, que acho que não possui nome próprio no Brasil, se tiver deve ser Minha Bela Dama), que aparentemente é um bom filme (só assisti metade), e peca só em uma coisa: é um musical americano. Sério! por quê os EUA não contratam atores que, de fato, saibam cantar para atuar em seus musicais? De qualquer modo, parece valer a pena assistir.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário de 2012. É um livro fácil de ser encontrado em qualquer livraria por fazer parte da coleção L&PM Pocket. Não sei se a tradução do Millor pode ser encontrada em outra coleção (de formato grande). Com louvor esse livro entra, junto com Lolita e A Volta do Parafuso, no hall dos livros que recebem a nota máxima por esse blog.

Nota do Elaphar: 10

Edição Lida: SHAW, George Bernard. Pigmalião. Trad: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket.

Esaú e Jacob - Machado de Assis

A literatura, de um modo geral, gosta da figura dos gêmeos. Muitos escritores se dedicaram a escrever sobre personagens que eram gêmeos idênticos, e na maioria das vezes, esses personagens eram extremamente unidos e harmônicos, e quando a história era amorosa, se apaixonavam pela mesma pessoa. Porém no que talvez seja o maior patrimônio literário da cultura ocidental (Bíblia Sagrada Cristã) os gêmeos costumam ser descritos de forma um pouco mais agressiva, como competidores (como é o caso de Esaú e Jacó), e isso se estende aos outros personagens fraternos do livro (José e seus irmãos). Partindo da narrativa bíblica Machado de Assis cria o seu livro (que fica um pouco apagado em meio à Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Histórias sem Data e Papéis Avulsos) que é a vida dos gêmeos Pedro e Paulo contada pelo conselheiro Ayres.

A obra faz par com Memorial de Ayres, mas distingue-se dela em narrativa, estilo e personagens. Pedro e Paulo são gêmeos que, à semelhança de Esaú e Jacó, brigaram dentro da barriga da mãe, e desde então não chegaram à um arranjo. A obra começa com a visita da mãe dos meninos a uma vidente, que, sibilina, prevê apenas "cousas futuras" e afirma que os filhos brigaram ainda no ventre. A mãe, impressionada dá uma grande esmola na rua, depois vão à um velório. Algo interessante na obra machadiana são as reviravoltas e simetrias da obra, já que a previsão é algo que acompanha todo o livro, a esmola aparece novamente ao final, assim como o enterro, ambas de formas surpreendentes.
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epístola de São Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capítulo II, versículo 11, em que o apóstolo conta que, indo a Antioquia, onde estava São Pedro, "resistiu-lhe na cara".
Santos leu e teve uma idéia. As idéias querem-se festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
— Sem contar que este número onze do versículo, composto de dois algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
— Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dois, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos os próprios espíritos de São Pedro e de São Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dois apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! e que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espíritos de São Pedro e São Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.
— Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla.
— Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de Natividade e pediu que calassem tudo.
— Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único, era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.
 Os jovens crescem e a mãe possui problemas ao lidar com os filhos, que vivem brigando. É interessante que os irmãos Pedro e Paulo não são verdadeiramente diferentes em opinião e temperamento, antes iguais, só que ambos têm uma tendência muito forte de entrar em conflito com o outro, assim como o Pedro e o Paulo bíblicos. Machado maneja muito bem esses conflitos familiares internos e essas pseudo-diferenças.

Como o habitual do estilo do autor, a metalinguagem se faz muito presente, e enquanto o narrador tece a história, traça-se também uma íntima relação de produção de sentidos entre leitor-autor-texto-sociedade. A linguagem da obra é o que faz machado ficar extremamente vivo entre nós. Esaú e Jacob é uma obra grandiosa, e só não comento mais sobre o livro por conta dos Spoillers. Outros personagens que chamam atenção são Flora (que desconfio ser uma paixão, de certo modo pedófila, do Ayres), Ayres, Natividade, Custódio (da Tabuleta Velha, que é um episódio anedótico da obra) entre outros.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário do mês de Fevereiro, e é facilmente encontrado em qualquer livraria, qualquer editora e em todos os formatos, e por estar em domínio público pode ser facilmente baixado legalmente da internet. Particularmente, acho um charme ler as edições mais antigas, que conservam a grafia original. Citação acima tirada do site do MEC.


Nota do Elaphar: 9,4

Edição Lida:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacob. São Paulo: W.M. Jackson Editores, 1950, 432p. (Obra Completa de Machado de Assis Vol.8)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Livro de Jeremias - Anônimo

É a segunda vez que leio um texto da grande compilação chamada de Tanakh pelos judeus e de Antigo Testamento pelos cristãos. E pela segunda vez coloco a autoria como anônima, apesar de que muitos religiosos consideram que esse livro teria sido escrito pelo profeta Jeremias ou ditado por este ao seu auxiliar Baruc (ou Baruque ou Baruch). Uma pena a coisa não ser tão simples assim. As redações sucessivas, partes históricas posteriores, fragmentaridade do discurso, as diferentes vozes discursivas, oposição de ideias e semelhanças com diversos outros textos anteriores e posteriores acabam indicando autoria múltipla, como a pós-exílica (nos dois capítulos finais) e da Obra Histórica Deuteronomista. Para agravar, há ao menos duas versões bem diferentes do livro que são aceitas e coexistem: o livro de Jeremias do texto massorético e da septuaginta.
Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os profetas, reis, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Existem grandes dificuldades, para um cristão ou judeu, de se ler algum texto sagrado como literatura. A primeira delas é a leitura dogmática e muitas vezes forçada de certas passagens. Lembro de algumas leituras bizarras que alguns me tentaram passar goela abaixo. Outro problema é a questão da veracidade, onde as diversas leituras (muitas delas de natureza textual problemática) são vistas como verdade absoluta e acabam gerando conflitos interminaveis. Jeremias em especial fornece outra dificuldade: a montagem quase aleatória de muitos fragmentos, que não é nem cronológica nem temática, e acaba gerando algumas dificuldades de leitura no sentido de organizar a cronologia dos fatos.

Jeremias é de origem humilde, e foi profeta durante o reinado de 3 reis: Josias, Jeoaquim e Zedequias, sendo que esses nomes se alteram um pouco de versão para versão. Continua a história até depois do exílio na babilônia. As profecias de Jeremias são importantíssimas para a história bíblica, pois sua previsão de libertação é importante para a história de Daniel e ao profetizar um salvador da família de Davi acaba sendo pedra de toque para o início do livro de Mateus no Novo Testamento, que justifica genealogicamente o salvador como Cristo. Apesar de possuir os dois últimos capítulos sobre a libertação judaica e a queda babilônica, Jeremias não viveu para ver esses acontecimentos, e a flexão passada aponta uma inclusão em redação posterior.

Muito do que aparece no livro de Jeremias é recorrente na história dos judeus: idolatria provocando a ira de Deus, que entrega o seu povo na mão de invasores até o arrependimento. Apesar do tema recorrente, esse livro é especialíssimo, por isso, muito querido. Não há como se mapear a influência que esse livro teve no imaginário e na literatura universal.

Deus avisa Jeremias que o povo de Judá será destruído por outros povos, por ter pecado contra o Senhor:
Valeu-te este castigo tua malícia, e tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê quanto te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus e não ter tido mais temor algum de mim - oráculo do Senhor JAVÉ dos exércitos.
Jeremias 2:19
[...]
Do seu covil parte um leão, e qual demolidor de nações se põe a caminho, saindo de seu refúgio para transformar em deserto a tua terra, e as cidades em desolação, onde ninguém mais habitará.
Revesti-vos, pois, de saco, chorai e gemei, pois que a tremenda cólera do Senhor não se afastou de nós.
Jeremias 4:7-8
Jeremias, por sua piedade pede a Deus várias vezes para que perdoe o povo:
Minhas entranhas! Minhas entranhas! Sofro! Oh! as fibras de meu coração! O coração me bate, não me posso calar! Ouço o som das trombetas e o fragor da batalha.
Anunciam-se desastres sobre desastres, todo o país foi devastado. Foram de repente destruídas minhas tendas; num instante, meus pavilhões.
Até quando verei o estandarte, e ouvirei o som da trombeta?
Está louco o meu povo; nem mais me conhece. São filhos insensatos, desprovidos de inteligência, hábeis em praticar o mal, incapazes do bem.
Olho para a terra: tudo é caótico e deserto; para o céu: dele desapareceu toda a luz.
Olho para as montanhas e as vejo vacilar; e as colinas todas estremecem.
Olho: já não há nenhum ser humano; todas as aves do céu fugiram.
Olho: tornaram-se desertos os campos; todas as cidades foram destruídas diante do Senhor, ante a fúria de sua cólera.
Porque toda a terra será devastada - oráculo do Senhor -, mas não a exterminarei completamente.
Eis a razão pela qual a terra cobriu-se de luto, e o céu, lá no alto, revestiu-se de negror. Pois que eu disse, e assim decretei: não voltarei atrás e não me retratarei.
Ao grito de: Cavaleiros! Arqueiros!, toda a terra desandou em fuga. Lançaram-se nos esconderijos e galgaram rochedos, as cidades foram abandonadas e os habitantes desapareceram.
E tu, devastada, para que revestir-te de púrpura, engalanar-te com ornamentos de ouro, e alongar-te os olhos com pinturas? Em vão tentas ser bela; desprezam-te os amantes. É tua vida que odeiam.
Ouço gritos como os da mulher ao dar à luz, gritos de angústia quais os do primeiro parto. São os clamores da filha de Sião; geme e ergue as mãos: Desgraçada de mim! Desfaleço ante os algozes.
Jeremias 4:19-31
Nesse início do livro, Deus se aparenta muito com o Javé do Gênesis, parecendo assustadoramente humano. É importante perceber que a piedade de Jeremias vai se esvaíndo quando seus irmãos conspiram contra ele.

O povo de Israel, como criança, faz o que é habitual: rejeita a palavra de Deus. É importante o fato da presença de falsos profetas profetizando em nome de Deus, dizendo que não virá praga e mal nenhum. Do meio para o final do livro há muitas reflexões sobre a profecia, algumas delas muito legais. Uma muito boa é quando Jeremias é condenado pelo povo (cap 26), e lembram-se os precedentes dos profetas que também anunciaram desgraças e foram condenados ou poupados, o que resulta na prisão de Jeremias mas salva sua vida. Há também uma mensagem específica contra esses profetas em 23:9-32. Outra passagem legal em relação à profetas é a seguinte:
[o]s profetas que nos precederam a mim e a ti anunciaram, contra numerosos países e reinos poderosos, guerra, fome e peste.
Quanto ao profeta que predisse a felicidade, somente quando seu oráculo se realizar, poder-se-á saber se ele é realmente um enviado do Senhor.
Jeremias 28:8-9
Esse livro possui uma série de metáforas como a do pode de barro (18:1-12) e a dos cestos de figo (cap 24). Muito interessante também é a influência que esse livro tem sobre outros textos, tanto bíblicos (como 23:5, que posteriormente será retomado em Mateus para justificar o "reinado" de Cristo), quanto literários (o famoso Bálsamo de Gileade de Poe) e músicais (se não ouviram ainda a Sinfonia No.1 "Jeremiah" de Bernstein não sabem o que é música).

Faltam ainda as outras coisas do livro: Jeremias fala sempre a palavra de Deus e nunca o ouvem (nem o povo, nem o rei; nem antes da dominação babilônica nem depois), os babilônicos dominam Judá e todas as suas cidades, depois o povo foge para o Egito mesmo com o alerta de Jeremias, e por fim o Egito cai. No fim do livro se fala da destruição da Babilônia, mas isso é posterior. Interessante notar a relação que há entre as odes finais do livro e o Salmo 137 (ambos sobre a destruição babilônica).

O livro é cheio de nuances que, se fosse tentar expicar todas, escreveria páginas e páginas e não terminaria. Há mais uma coisa que chama atenção é a referência aos escritos de Baruc que foram perdidos ou destruídos. Baruc era auxiliar de Jeremias e escrevia o que o profeta ditava (e não é necessariamente o que o livro contém), e há no livro um apelo para a escrita.

As traduções do texto são muitas e variadas. A Almeida e a NTLH são provavelmente as mais conhecidas, apesar de que a NTLH peca por ser escrita em péssimo português. Outras edições incluem a Traducção Brazileira, Ecumênica, Ave Maria, Pastoral e muitas outras. As citações acima são da versão Católica disponível em: http://www.bibliaonline.com.br/vc/jr/1, que não foi exatamente a versão lida.

Muitas outras coisas me chamaram atenção no livro, mas como não quero escrever um TCC (e a maioria dos leitores não querem ler um), dou minha resenha por encerrada e fica a dica da leitura do livro. Não é tão variado em histórias e dramas como outros livros históricos (como o Pentateuco, Juizes, Reis e Samuel por exemplo), mas é bem interessante também, apesar de que muitas repetições podem atrapalhar a leitura. Este livro foi lido para o Desafio Literário 2012.

Nota do Elaphar: 8,4

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Electra - Eurípides


Segundo livro de Eurípides lido, e muitas coisas novas podem ser ditas sobre este livro.

A primeira coisa legal é que Electra é um mito que parece ter sido um dos preferidos do dramaturgo, já que todos os grandes dramaturgos gregos escreveram uma Electra (Sófocles e Ésquilo por exemplo). Um possível motivo por essa preferência talvez seja o nível de violência da obra, além da não punição dos heróis.

Comparado a Alceste, Electra é um drama bem mais tradicional, apesar de que o desenvolvimento dos heróis não ruma à aniquilação, que é característica tradicional da tragédia. Uma típica obra ultra-violenta do teatro grego (que vai retornar em Shakespeare, por exemplo). Electra narra a história dos filhos de Agamemnon, que após a morte do pai (pelas mãos de sua esposa), acabam sendo perseguidos. Orestes, irmão de Electra, é exilado e perseguido, enquanto a Electra é forçada a casar com um pobre, tentativa de deixá-la "fora de circulação", e evitar que um possível herdeiro decida se vingar. Orestes volta e busca a vingança, e junto de Electra (a grande cabeça da história) armam um plano de assassinar o atual rei (Egisto, casado com Climnestra, ex esposa de Agamemnon) e sua mãe.

Agora o que é especial nesse nível é o grau de profundidade psicológica dos personagens, sendo o remorso e o medo bem desenvolvidos na trama. Outro ponto de destaque é a reflexão sobre a insanidade divina, pois Orestes muitas vezes pensa o quão insana foi a órdem de Apolo de assassinar sua mãe e o usurpador do trono. Por fim, a crueldade de Electra.

Coisas curiosas vieram com a leitura do livro. Uma delas foi a descoberta da história do Voto de Minerva, já que Orestes será julgado por seu crime e o juri se divide igualmente de um grupo a favor e outro contra, aí Minerva (ou Atenas) intervém e Oreste é julgado inocente. Também é dessa narrativa que surge o chamado Complexo de Electra, termo cunhado por Jung para descrever a forma feminina do Complexo de Édipo.

Enfim, uma grande obra que vale a pena ser lida. Não é tão especial como Alceste, porém é mais dinâmica. Essa leitura faz parte do Desafio Literário 2012. Aguardem a próxima leitura, que será uma grande surpresa (se agradável ou não não sei).

Nota do Elaphar: 8,8

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Alceste - Eurípides

Desculpem aos meus fãs, se é que possuo algum, pelo meu longo desaparecimento. Fiquei um pouco cansado de resenhar durante um tempo (na verdade, fiquei um pouco sem vontade de resenhar, e se não fossem alguns comentários animadores não voltaria). Apesar de sair no meio do desafio literário de 2011 (em parte, pois li os livros, só não os resenhei), decidi novamente tentar concluir o desafio, e fiquei surpreso ao saber que fui leitor Ouro ainda no desafio anterior. Enfim, vamos ao que interessa....

É incrível como, apesar de ser fã dos clássicos greco-latinos, nunca havia lido Eurípides... Já possuia esse livro há tempos, só que nunca o tinha colocado em minhas prioridades de leitura... grande erro!

Simples: Eurípides talvez seja o mais inovador do tradicional teatro grego... é difícil presumir a musicalidade de seus versos e seu peso em sua língua original, hoje morta, mas acredito no que dizia Aristóteles sobre o poeta: Talvez Eurípides seja o melhor e mais trágico dos poetas gregos, apesar de escrever pior.

Alceste é uma obra teatral sem par em sua época... é uma obra que Shakespeare poderia assinar em sua época sem sentir-se envergonhado, aliás, há muito mais entre Eurípides e Shakespeare do que sonha nossa vã crítica literária. Não me deterei em diferenças formais a respeito da história, mas algumas que são mais interessantes: a presença do amor como elemento importante descrito na obra, e não como acessório para a história; os diálogos quase sofistas, onde diferentes pontos de vista criam diferentes verdades retoricamente (diálogo de Admeto e Féres, ou Hércules e Admeto); a presença de elementos filosóficos pré-socráticos como de Anaximandro ou Protágoras ou Heráclito; e um desfecho que vai contra o fado, o que parece incompatível com a tragédia, que tem no fado o seu principal elemento condutor. Essas são algumas das coisas que nunca vi na literatura anterior a Dante, exceto (em parte) no Tanakh.

A história é das mais conhecidas: a hora da morte chegou para Admeto, rei de Féres, mas Apolo consegue convencer a morte a levar quem optar por morrer no lugar do rei. Apesar de inúmeros amigos e pais em idade avançada, ninguém aceita morrer no lugar do rei, apenas sua mulher Alceste. A morte é impiedosa e leva Alceste embora, aí a tragédia está consumada.

Mas esse livro não é uma tragédia comum, e a narrativa acaba por não se cumprir completamente. Por acaso, Hércules está passando pelo local e se hospeda na casa de Admeto, que não nega a hospitalidade, e é o mesmo Hércules que derrota a morte e traz Alceste novamente para seu marido. Sem dúvidas, um desfecho que não é habitual em tragédias.

O mais interessante nessa tragédia é a matéria humana da composição, até mesmo na parte divina, e a figura da mulher. Falta um pouco da habitual violência exacerbada presente na literatura grega, mas as presenças inovadoras suplantam essa "carência", e diminuem a monotonia da óbra, que é interessante e profunda sem ser tão dinâmica quanto as tragédias de Ésquilo. Livro mais que indicado.

A respeito da tradução de J. B. de Mello e Souza, acho que talvez seja problemática por vários fatores: mudanças absurdas de registro, confusão onomástica de nomes gregos e latinos, tradução não versificada, e para piorar é fácil de ser encontrada em edição espúria e plagiada pela Martin Claret, e por outro lado, sua edição digna é difícil de ser achada por ser antiga (Jackson editores).

Essa leitura faz parte do Desafio Literário do mês de Fevereiro.

Nota do Elaphar: 9,2
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