segunda-feira, 28 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Götterdämmerung) - Richard Wagner

Götterdämmerung representado em Bayreuth
Demorei, mas estou concluindo com Götterdämmerung o ciclo épico-dramático O Anel dos Nibelungos (Der Ring des Nibelungen) do escritor e músico Richard Wagner. Götterdämmerung é a tradução alemã para a palavra em nórdico antigo Ragnarök, que em português seria o Crepúsculo dos Deuses. Para se ter uma idéia da grandiosidade desse espetáculo, está em Götterdammerung a cena mais difícil de se representar da história do teatro (última cena do último ato, falarei sobre ela). A música também só pode ser cantada por um virtuose vocal. Götterdämmerung continua a história de Siegfried, filho de Siegmund, e ainda mais que Die Walkürie e Siegfried, mudanças drásticas no mito ocorrem, inclusive a própria interpretação do Crepúsculo dos Deuses. Já conhecia a música, e só agora estou lendo o libretto, entretanto, não tenho mais nenhuma versão musical de Götterdammerung, o que me obriga a puxar da memória. Vamos ver o quão bem eu me saio.

Além das inovações formais já iniciadas por Wagner à ópera, temos em Götterdämmerung um prelúdio antes da 1ª cena. O prelúdio pode ser dividído em duas partes, a primeira onde as Normas tecem o fio do destino (e por descuido alguns se rompem) enquanto cantam, até desaparecerem. O canto das normas (em Alemão) é belíssimo, mas a poesia dessa parte é questionável, e é bela somente cantada. As normas contam em poucas linhas a história passada e a futura. A segunda parte do prólogo, após uma breve e bela Orchesterzwischenspiel, mostra Siegfried e Brünnhilde saindo de uma gruta (depois de se amarem), onde a ex-valkíria afirma que Siegfried deve prosseguir em sua jornada, e Siegfried como prova de amor lhe dá o anel que tomou de Fafner e ela lhe dá o seu cavalo e seu escudo de valkíria. Apesar de literariamente desnecessário (se a ópera começar a partir da primeira cena, não perderíamos nada), podemos ver no prólogo que o Siegfried de Götterdämmerung não é o mesmo Siegfried de Siegfried. O personagem está mais humano e heróico (até na música), e não é mais aquele estereótipo. Dá uma prova de amor na mesma medida em que recebe, e sua fala é autera e abobalhada.

A música em Götterdämmerung é muito mais sóbria que nas outras óperas da saga, e não é exagerada como Die Walkürie, mas ainda possui peso e expressividade. A primeira cena se passa no palácio de Gunther, onde Hagen (meio-irmão do rei Gunther) e Gutrune (irmã) estão presentes. Gunther pergunta sobre sua popularidade, e Hagen (depois de fazer mistério), afirma que sua popularidade não é satisfatória porque ambos (Gunther e Gutrune) não são casados. Gunther pergunta quem ele indicaria como esposa, e Hagen indica Brünnhilde (como é chato escrever esses nomes), e explica a situação: apenas Siegfried pode trazer ao rei, e apenas se Gutrune fizer o herói se apaixonar. Hagen explica o plano: dar uma poção a Siegfried para que este se esqueça de seu amor passado, assim ele se casará com Gutrune e Brünnhilde se casará com Siegfried. Como no cinema e no teatro, na ópera também a conveni~encia das situações fala mais alto: Siegfried chega justamente quando estão discutindo como encontrá-lo. Hagen o convida para entrar, e fecha-se a cena.

A cena dois mostra como Siegfried e Gunther se conhecem pessoalmente. Siegfried desconhecia o poder do Tarnhelm, que Hagen esplica seu poder. Gutrune dá a bebida do esquecimento a Siegfried, e ele esquece totalmente de Brünnhild, e promete tirá-la das chamas e entregar a Gunther em troca da mão de Gutrune. Siegfried foi enganado em sua ingenuidade (justificável, devido sua criação), e essa cena é muito coerente e bem feita, mas, há um ponto que foi esquecido: CADÊ A CLARIVIDÊNCIA DE SIEGFRIED??? O dragão lhe concedeu a clarividência em Siegfried, e aparentemente não foi capaz de usá-la agora... esquece, sem poção não há história, então... De volta aonde está Brünnhilde (3ª cena), a valkíria Waltraute chega, narrando a Brünnhilde a decadência do Walhalla. Waltraute tenta convencer a irmã de devolver o anel ao Reno (lembrando também da maldição de Alberich), o que Brünnhilde recusa-se a fazer:
Ha! Weisst du, was er mir ist?        /   Ah, você conhece o que ele [o anel] a mim representa?
Wie kannst du's fassen,                  /   Como podes compreender,
fühllose Maid! -                             /   garota insensível! -
Mehr als Walhalls Wonne,             /   Mais que o etéreo Walhalla,
mehr als der Ewigen Ruhm             /   mais que toda a glória divina
ist mir der Ring:                              /   é para mim este anel:
ein Blick auf sein helles Gold,         /   um olhar, à sua áurea matéria
ein Blitz aus dem hehren Glanz -     /   um brilhar, de sua luz majestosa -
gilt mir werter                                /   vale mais à mim
als aller Götter                               /   que a eterna alegria
ewig währendes Glück!                  /  de todos os deuses!
Denn selig aus ihm                         /   Porque nele brilha   
leuchtet mir Siegfrieds Liebe:          /  O amor de Siegfried como benção:
Siegfrieds Liebe!                            /  O amor de Siegfried!
- O liess' sich die Wonne dir sagen!/  Oh! Se eu pudesse dizer-lhe o que é prazer!
Sie - wahrt mir der Reif.                 /  É o que esse anel concede a mim.
           (Libretto em alemão, tradução livre por Raphael Soares a partir do inglês)
Após esse discurso, Waltraute vai embora triste, e Siegfried surge (disfarçado de Gunther devido o Tarnhelm). Siegfried subjulga Brünnhild para levá-la (como Gunther), mas ela reconhece sua voz (uma magnífica performance vocal, entre Tenor e Barítono), e ao final ele fala em sua voz normal, afirmando que ele e Gunther são irmãos de sangue.

A primeira cena do segundo ato é uma das mais sinistras e controversas. Hagen está na corte como guarda (adormecido) e Alberich aparece (ou não). Nessa cena há o diálogo entre Hagen e Alberich (filho e pai). Muito se infere desse diálogo, entre elas que Alberich não está materialmente, mas sim nos sonhos, e é uma projeção do próprio Hagen. Pode-se inferir também uma conecção do real e do onírico. A música é sombria, e o diálogo impressionante. Vale a pena conferir.

Na segunda cena do segundo ato Siegfried chega, afirmando a Hagen que tudo saíra como o planejado, e se coloca a disposição para organizar os dois casamentos. Temos uma melhor descrição de Hagen, que aparece esnobe e irônico. Uma pena que Wagner não é um mestre da Ironia. Na cena terceira temos mais Hagen, onde ele brinca com os soldados dando-lhes as boas novas, o que os soldados se espantam, pois, Hagen é carrancudo. Hagen aparece nesse ato múltiplo, mas coerente, podemos inferir algumas coisas sobre suas atitudes. A terceira cena é uma confusão, causada por Brünnhilde, e onde novamente Hagen se destaca. Siegfried defende-se e Brünnhilde o acusa, causando uma confusão geral onde ninguém (exceto o leitor/ouvinte) entende nada. Na última cena do segundo ato, Hagen se oferece em amizade à Brünnhilde, e junto com Gunther tenta compreender a confusão da outra cena. Hagen incita a pena capital ao "traidor" Siegfried, enquanto Gunther como sempre indeciso e manipuladíssimo. Hagen pergunta a Brünnhilde se e como Siegfried pode ser morto, e ela o informa que ele é um herói poderoso e não pode ser vencido em combate, mas pode ser atingido pelas costas. A explicação aqui para a ivulnerabilidade de Siegfried não é o sangue de dragão do Nibelungenlied, mas as artes de Brünnhilde que lhe protegem dos ferimentos. Como Siegfried jamais daria as costas em fuga para um inimigo, ela não o protegeu nas costas.
BRÜNNHILDE
O Undank, schändlichster Lohn!              /   Ó ingratidão, recompensa mais brutal!
Nicht eine Kunst                                      /   Nenhuma arte há
war mir bekannt,                                      /   de meu conhecimento,
die zum Heil nicht half seinem Leib'!          /   que não tenha lhe segurado a integridade corporal!
Unwissend zähmt' ihn                               /    Sem que soubesse, o envolvi
mein Zauberspiel, -                                   /   em minha mágica,
das ihn vor Wunden nun gewahrt.             /    que agora o protege dos ferimentos.

HAGEN
So kann keine Wehr ihm schaden?            /   Não há arma que o machuque?

BRÜNNHILDE
Im Kampfe nicht - ; doch -                       /   Em batalha não; mas...
träfst du im Rücken ihn....                         /   Caso acerte-o no dorso....
Niemals - das wusst ich -                         /    Jamais, sei disso,
wich' er dem Feind,                                 /     ele nunca permitiria,
nie reicht' er fliehend ihm den Rücken:      /     jamais ele daria as costas ou fugiria ao inimigo:
an ihm drum spart' ich den Segen.            /     Por isso dispensei em meus feitiços
    (Libretto em alemão, tradução livre por Raphael Soares a partir do inglês)
 A ultima cena do terceiro ato termina com Hagen convencendo Gunther a aceitar a morte de Siegfried.

No terceiro ato, Siegfried se perde de seu grupo de caça (que incluia Gunther e Hagen), e depara-se com as ninfas do Reno. Elas lhe contam a história da maldição, e afirmam que Siegfried será liquidado  assim como Fasolt, Fafner e todos que porem as mãos no anel. Siegfried não se importa. Na segunda cena Hagen dá uma bebida a Siegfried (com poder inverso da outra), que lembra e conta sua história, Hagen pergunta-lhe se pode compreender uma ave que está a sua frente, e Siegfried olha-a. Nesse momento Hagen golpeia covardemente Siegfried pelas costas. Siegfried canta uma música à Brünnhild enquanto ainda estava agonizando, e depois morre. Segue o cortejo fúnebre. Nessa cena aparecem duas das melhores músicas da ópera: a Canção de Siegfried e a Marcha Fúnebre de Siegfried.
A terceira e última cena do ato é quando levam Siegfried à um rochedo, e Gunther e Hagen disputam pelo anel. Há muita confusão e ação, nesta que é a cena mais difícil da história do teatro. O importante aqui é o Discurso de Brünnhilde, onde muito se pode interpretar sobre toda a obra e a filosofia wagneriana. A parte dramática desta cena é muito intensa, podemos citar: Br¨nnhilde atira-se com o cavalo às chamas, Hagen é afogado e subjulgado por duas valkírias (Woglinde e Wellgunde), o palácio inteiro desmorona, e quando os deuses se reunem em assembléia todo o cenário entra em chamas, quando cai o pano e encerra a obra. Aqui a Imolação dos Deuses é uma bela parte orquestral, e o Discurso de Brünnhilde é bastante poético, e não ouso traduzi-lo (muito menos em tradução de tradução como tenho feito).

Assim termino todo o ciclo do anel, mas antes algumas considerações. Götterdämmerung é musicalmente genial, embora seja narrativamente fraco (comparado à Die Walkürie e Das Rheingold). Apesar de seus defeitos, é dentre todas as óperas do ciclo a mais dramática e mais virtuosística. Götterdämmerung ganha também no psicológico dos personagens. Temos uma Brünnhilde humana, um Hagen dual, um Gunther fraco, um Siegfried com seus defeitos e não mais estereotipado como na ópera anterior. Principalmente Hagen me fascina, porém, Brünnhilde também tem seus pontos fortes. Wagner é um gênio fora do comum, e essa obra causou uma influência absurda (positiva e negativa) em seu país, apesar de, como pessoa, Wagner ser pouco exemplat. O Anel dos Nibelungos de Wagner é uma obra ímpar, e Götterdämmerung é o ápice do Drama Psicológico.

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março

Livro dos Juízes - Anônimo

(Ilustrações de Gustave Doré [em domínio público])
Ia resenhar o Nibelungenlied, mas optei por não fazê-lo, pois, já estou resenhando o ciclo wagneriano e não quero falar novamente da mesma história (embora haja diferenças). Vou resenhar um dos livros que faz parte da maior compilação épico-religiosa judaica que é o Neviim. Conhecemos esse livro (com outros mais) como o Antigo Testamento Cristão.
Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Juízes como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os Juizes, Heróis, chefes invasores e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
O primeiro grande ponto a refletir é referente à autoria do livro. A teologia tradicional afirma que Juízes fora escrito por Samuel (ultimo juiz de Israel e primeiro profeta). Durante muito tempo acreditei nessa versão, e considerava o Juízes como o livro mais antigo da bíblia (levando-se em consideração que Moisés não escreveu o Torá e Josué não escreveu o Livro de Josué). Há entretanto uma problemática: O livro de Juízes possui em alguns momentos (que provavelmente falarei em breve) grande influência do texto Javista, e portanto, dificilmente poderia ter sido escrito antes (o que desloca o livro para uma época posterior ao reinado de Salomão, ou seja, após 930a.c). A hipótese documental sugere que Juízes tenha sido compilado na tradição/documento Deuteronomista, com algumas fontes anteriores (Javistas ou Eloístas), o que é bastante plausível, pois, como disse anteriormente, há uma influência (no plano LITERÁRIO) javista no texto. A segunda grande problemática é referente à tradução bíblica, mas não me deterei nesse ponto.

O Neviim, assim como parte do Torá, é a grande compilação épica do povo hebreu, sendo composta por vários livros escritos por vários autores, cada um narrando os acontecimentos de determinado período. O Livro de Juízes (ou "dos Juízes") conta a história do povo a partir das conquistas após a morte de Josué (Yehoshua), até pouco antes do surgimento do último Juiz de Israel (Samuel) e do primeiro reinado (Saul). Portanto, Juízes narra a história de 13 dos 14 juízes (o número 14 é quase místico nos livros sagrados), e é importante perceber que não havia rei em Israel, além de que fé em Deus não era "regulamentada" (os livros sagrados surgiram posteriormente), pernetcendo à tradição oral. Era um período de anarquia moral, política e religiosa.

Juízes mantém um padrão de repetição narrativa: 1-Deus dá a graça ao povo, 2-as próximas gerações esquecem o Acordo com Deus, 3-o povo cultua outros deuses, 4-Deus castiga o povo com as invasões dos inimigos, 5-o povo ora a Deus pedindo a salvação, 6-Deus dá um lider forte para combater os invasores (esses líderes chamam-se Juízes), 7-o povo é libertado. Após a libertação do povo, o ciclo retorna, isso praticamente a cada vez que os juízes surgem. Há várias representações de Deus em Juízes: Deus ora é vingativo, ora piedoso, ora humano (uma possível influência Javista). Israel é um povo que peca e é punido por seus pecados, por um deus mutável, mas é libertado por seu deus e seus heróis. Uma coisa que é interessante no livro: Deus pune seus filhos de Israel por crer em outros deuses fazendo-os ser vencidos pelos inimigos que crêem nesses deuses.

O livro começa contando o que acontece após a morte de Josué e como os hebreus venceram os cananeus com a ajuda de Javé. Depois da vitória, o povo esquece a Aliança e um anjo surge para revelar a ira divina. Há uma digreção, onde o livro conta novamente a morte de Josué e o que ocorreu depois. Isso é um indicativo de que esse livro foi escrito por pessoas diferentes e/ou compilados em tradições diferente. Há uma revelação diferente da anterior (1:1 até 2:4), onde o escritor afirma que a geração subsequente seguiu a Aliança e as posteriores esqueceram e abandonaram Javé. Aí começa o sofrimento do povo israelita. O capítulo 2 (do versículo 11 a 22) é um sucinto resumo do livro, que mostra as etapas recorrentes desse período histórico de Israel (passos 1 a 7 lá em cima). Assim surge o primeiro juíz da tribo de Judá chamado Otoniel. Depois do esquecimento, idolatria e punição, os israelitas oram para Javé pedindo a salvação, e Javé manda Otoniel que venceu o rei da Mesopotâmia, e a paz reinou enquanto Otoniel viveu.

Depois da repetição do ciclo, o próximo juíz foi Aod (ou Eúde, da tribo de Benjamim), que assassina o rei moabita e seu exército. O próximo juíz é Samgar (ou Sangar), que mata seiscentos filisteus com uma vara de tocar bois. Há apenas quatro linhas sobre Samgar, além dele ser o Juíz mais divergente dos outros, pois ele surge em continuidade à Aod e não liberta plenamente os israelitas. Além do mais, o vercículo seguinte (4:1) simplesmente desconsidera que Samgar existiu, como se o líder subsequente a Aod fosse Débora.
E chegamos em Débora, dentre os juízes, a minha preferida. Depois do ciclo (esquecimento, punição, redenção e salvação), Débora é a próxima (4ª) juíza, que salvará Israel. Débora (da tribo de Efraim) chama Barac (ou Baraque, da tribo de Naftali), para que o herói liberte o povo. O diálogo entre Débora e Baraque lembra muito o diálogo entre Javé e Moisés, onde Débora é autoritária e seca, e Baraque um pouco receoso. Baraque não confia plenamente, e diz que só vai se Déboa for. Possuindo o controle da situação, e não feliz com a desconfiança, afirma que irá, mas que Baraque não terá a glória de matar Sísera (opressor da vez) será dada a uma mulher, e assim acontece, pois, apesar da vitória, quem mata Sísera é Jael. Em seguida há a famosa Canção de Débora e Baraque, que é bela, bélica e sinistra. Se você acompanhou até aqui, deu para perceber que o Livro dos Juízes é ao mesmo tempo heróico, belo e violento, pois todo o período relatado é de infindáveis combates, e muitas mortes de inimigos são descritas de forma alegre e violenta (acho que não falei que Jael matou Sísera dormindo com uma estaca na fonte). Não se preocupe, há muito mais no livro que pode surpreender...

Mais uma vez o ciclo se repete, e dessa vez Javé faz os midianitas atacarem e oprimirem os filhos de israel. Gideão (da tribo de Manassés) é o novo juíz selecionado por Javé, que envia um anjo para falar-lhe, e mais que isso, conversa com ele pessoalmente (o que lembra muito a tradição Javista, onde Javé é bastante humano e conversa pessoalmente com Moisés e Abraão po exemplo). É importante observar que Gideão não é membro importante da sociedade. Gideão é medroso e prudente ao início, pedindo várias provas à Javé e sem confiar em todas elas plenamente, mas após perceber que Javé está com ele, se torna violento e autoritário, punindo os que não o ajudam. Gideão também é um orador genial, conciliando e liderando os israelitas com maestria. De todos os juízes do livro, Gideão é o que mais lembra Moisés, e o texto de Gideão é o que mais lembra o Torá Javista (embora Débora se pareça com o próprio Javé).

Após Gideão, temos seu filho bastardo Abimeleque (que não é juíz), que mata todos os filhos de seu pai e anseia liderar Israel, mas é amaldiçoado por Jotão e punido por Javé. É uma passagem muito violenta, mas nem se compara com a de Jefté e a do Levita e sua concubina. Após a passagem de Abimeleque, temos mais dois Juízes: Tolá (da tribo de Isacar) e Jair (da tribo de Manassés), e após os dois juízes, Javé se cansa do ciclo vicioso, e decide parar de ajudar Israel, entretanto, tem pena e envia o próximo juíz Jefté (da tribo de Manassés), o 8º juíz de Israel (essa sequência se repetiu 6 vezes).

Jefté não é um juíz tão interessante quanto Débora e Gideão, apesar de ser filho bastardo, o que mostra um Javé sem preconceitos. Apesar da falta de carisma de Jefté, em sua narração é que aparece uma das cenas mais cruéis do livro:
CAP:11
30.E Jefté fez um voto ao SENHOR, e disse: Se totalmente deres os filhos de Amom na minha mão,
31.Aquilo que, saindo da porta de minha casa, me sair ao encontro, voltando eu dos filhos de Amom em paz, isso será do SENHOR, e o oferecerei em holocausto. [...]
34.Vindo, pois, Jefté a Mizpá, à sua casa, eis que a sua filha lhe saiu ao encontro com adufes e com danças; e era ela a única filha; não tinha ele outro filho nem filha.
35.E aconteceu que, quando a viu, rasgou as suas vestes, e disse: Ah! filha minha, muito me abates-te, e estás entre os que me turbam! Porque eu abri a minha boca ao SENHOR, e não tornarei atrás.
36.E ela lhe disse: Meu pai, tu deste a palavra ao SENHOR, faze de mim conforme o que prometeste; pois o SENHOR te vingou dos teus inimigos, os filhos de Amom.
37.Disse mais a seu pai: Conceda-me isto: Deixa-me por dois meses que vá, e desça pelos montes, e chore a minha virgindade, eu e as minhas companheiras.
38.E disse ele: Vai. E deixou-a ir por dois meses; então foi ela com as suas companheiras, e chorou a sua virgindade pelos montes.
39.E sucedeu que, ao fim de dois meses, tornou ela para seu pai, o qual cumpriu nela o seu voto que tinha feito; e ela não conheceu homem; e daí veio o costume de Israel,
40.Que as filhas de Israel iam de ano em ano lamentar, por quatro dias, a filha de Jefté, o gileadita.
(BÍBLIA ALMEIDA CORRIGIDA E REVISADA FIEL)
Mais uma vez, vemos uma influência javista, que se interessava pela explicação dos mitos e dos nomes. Achou a passagem triste e/ou cruel? Tem outra mais grave, mas antes vamos falar dos outros juízes: Ibsã (ou Abesã, da tribo de Judá), Elom (ou Elon, da tribo de Zebulom) e Abdom (ou Abdon, da tribo de Efraim), que governaram por pouco tempo e pouco se fala sobre eles no livro. O juíz seguinte, é o último dos juizes do livro, e o mais famoso também: Sansão.
Passei a minha infância toda ouvindo a história de Sansão, que é o herós mais famoso da bíblia (ao lado de Moisés e Davi). Possui milhares de adaptações infanto-juvenis e cinematográficas (incluindo uma minissérie recente), além de infindáveis referências na cultura popular (até na Turma da Mônica). Apesar de tudo, não gostei (na leitura de Juízes) tanto de Sansão quanto de Débora ou Gideão, mesmo a representação bíblica de Sansão ser a mais expressiva que ja ví na minha vida. Sansão surge de um milagre (sua mãe é não pode ter filhos), e possui desde antes do nascimento um voto de nazireu, onde não podia cortar os cabelos nem beber ou comer algo feito de uvas. A força de Sansão não está nos cabelos, como costumamos aprender. A força vem de Javé, que a concede quando é preciso, mas somente se Sansão cumprir o acordo.Após o corte do cabelo, a força não volta devido o cabelo ter crescido, mas sim devido Sansão implorar a força mais uma vez e Javé conceder (apesar do livro citar que o cabelo havia crescido).

Mais pontos sobre Sansão: Javé o guia para a casa dos filisteus, que oprimem o povo, e incita um amor por uma filistéia. Após a traição, Sansão fica irritado, e para cumprir a aposta (das vestes) mata 20 filisteus com o auxílio da força de Javé. Depois agarra bestas e queima as plantações filistéias (novamente com a graça de Javé), e após acontece a célebre passagem onde Sansão mata mil filisteus com uma queixada de jumento e canta alegremente: "Com uma queixada de jumento eu os amontoei, com uma queixada de jumento, mil homens eu matei"(BÍBLIA EDIÇÃO PASTORAL). Essa passagem também me lembra o documento Javista (devido explicações etimológicas do nome dos lugares). Até então Javé estava guiando (alguns diriam: manipulando) os passos de Sansão, mas em seguida algo incomum acontece. Sansão vai à Gaza procurar uma prostituta para com ela ter relações pouco judaicas, que ele provavelmente não poderia fazer em sua tribo (Dã). É a primeira vez que não se fala que Sansão foi guiado por Javé, e quando arranca os portões da cidade, pela primeira vez Sansão usa sua força sem antes Javé concedê-la diretamente. Além disso, essa passagem sempre é modificada em adaptações infanto-juvenis ou cinematográficas, por incomodar.
E tem a Dalila (ou Dalilah), que é a personagem mais injustiçada desse livro, seja pelo bem ou pelo mal. Já ví várias versões de dalila: interesseira, pobre, sentida, arrependida, conflituosa (amor à Sansão x amor ao povo) e etc... Todas elas são falsas. Dalila é simplesmente uma filistéia, por quem Sansão se apaixona, e por ser inimigo de seu povo procura derrotar e é recompensada por isso. Ponto final.

Após a morte do último juíz, a anarquia fica ainda mais forte, onde as tribos de Israel entram em combate uns contra os outros e há várias passagens e fatos. É importante que o livro procura esclarecer que Israel NÃO TINHA REI (quase uma apologia à monarquia, o que justificaria bem a tese de que Juízes fora escrito no pós-exílio). Para finalizar, mostro a outra passagem assustadora do livro:
CAPÍTULO 19
22.Quando estavam entretidos, alguns vadios da cidade cercaram a casa. Esmurrando a porta, gritaram para o homem idoso, dono da casa: "Traga para fora o homem que entrou na sua casa para que tenhamos relações com ele! "
23.O dono da casa saiu e lhes disse: "Não sejam tão perversos, meus amigos. Já que esse homem é meu hóspede, não cometam essa loucura.
24.Vejam, aqui está minha filha virgem e a concubina do meu hóspede. Eu as trarei para vocês, e vocês poderão usá-las e fazer com elas o que quiserem. Mas, nada façam com esse homem, não cometam tal loucura! "
25.Mas os homens não quiseram ouvi-lo. Então o levita mandou a sua concubina para fora, e eles a violentaram e abusaram dela a noite toda. Ao alvorecer a deixaram.
26.Ao romper do dia a mulher voltou para a casa onde o seu senhor estava hospedado, caiu junto à porta e ali ficou até o dia clarear.
27.Quando o seu senhor se levantou de manhã, abriu a porta da casa e saiu para prosseguir viagem, lá estava a sua concubina, caída à entrada da casa, com as mãos na soleira da porta.
28.Ele lhe disse: "Levante-se, vamos! " Não houve resposta. Então o homem a pôs em seu jumento e foi para casa.
29.Quando chegou em casa, apanhou uma faca e cortou o corpo da sua concubina em doze partes, e as enviou a todas as regiões de Israel.
(BÍBLIA NOVA VERSÃO INTERNACIONAL)
Nada mais tenho a declarar quanto à história.

Gostei muito de ler o Livro de Juízes (para falar a verdade, várias vezes já havia iniciado, mas nunca terminava), e é um dos maiores textos literários contidos na grande compilação que os cristãos chamam Bíblia. Não é tão interessante quanto as passagens do torá da tradição Javista, mas possui muitos personagens bons (dentre eles, Débora e Gideão, que são os meus preferidos), e é uma das melhores representações do humano, divino e heróico, digno de figurar ao lado de Homero e Virgílio. Não é a toa que a Bíblia Cristã é o maior best-seller de todos os tempos, e o livro que mais influenciou o pensamento ocidental positiva (como Dante, Camões, Descartes e etc..) ou negativamente (como Nietzsche, Saramago e etc...). O livro de juízes inspirou diretamente infindáveis obras artísticas, dentre elas a famosa Samson et Dalilah de Camile Saint-Säens e as ilustrações de Gustave Doré que ilustram minha resenha. Não vou colocar a edição lida, pois li diretamente a NTLH (que é poéticamente pobre), cotejando-a com a Almeida Corrigida e Revista Fiel, Edição Pastoral, Nova Edição Internacional e na versão do Rei James (olhada uma vez ou outra). Não quero entrar no mérito das traduções brasileiras (apesar de a não diferenciação de Eloah e Yahweh estar presente em muitas edições). A nota que segue trata-se do Livro de Juízes COMO TEXTO LITERÁRIO!!! Não estou colocando o mérito religioso, pois cada um julga o valor espiritual que esse livro tem. Julgarei apenas o valor literário que EU considero, a partir de minha tradição de leituras literárias.

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

Nota do Elaphar: 9,0

sábado, 26 de março de 2011

Eneida - Virgílio (Trad: Odorico Mendes)

De todos os livros que li no presente ano, a Eneida de Virgílio na tradução em verso de Odorico Mendes foi o mais difícil. A tradução possui uma linguagem arcaica e obscura; a opção tradutória de Odorico Mendes de traduzir metáforas literalmente gera versos obscuros e quase impenetráveis. O tradutor também acreditava na evolução e purificação da língua através das línguas clássicas, por esse mesmo motivo, há centenas de neologismos provenientes da morfologia e das palavras latinas.

Virgílio é um grande clássico da épica tradicional, e serviu de modelo estrutural e poético de vários autores que seguiram o gênero, dentre eles Lucano, Dante e Camões, e indiretamente os brasileiros Santa Rita Durão e Bento Teixeira. Virgílio foi um Best Seller de seu tempo, e suas poesias se faziam presentes nas escolas romanas. Sua Eneida é a grande epopéia nacional, mostrando a origem heróica e divina dos latinos, assim como foi a Ilíada de Homero. O tempo da diegese da Eneida é posterior à Guerra de Tróia, e conta a história do lider troiano Enéias em seu rumo à Itália. Há uma série de semelhanças com a Odisséia (que acontece em paralelo), por isso Eneida muitas vezes é considerada pouco criativa. Há semelhanças com Os Lusíadas também, devido a paixão de Camões pelos textos virgilianos, e portanto, vou resenhar o livro fazendo breves comparações com a epopéia grega e portuguesa.

Odorico Mendes foi poeta e tradutor, e suas traduções são bastamte poéticas, mas difíceis de ler, beirando o impenetrável. Odorico optou por traduzir a Eneida em decassílabos heróicos (a métrica latina funciona de forma diferente da portuguesa) e sem rimas, respeitando a versificação latina que não possui rimas (apesar da facilidade da língua em rimar). Traduziu a Eneida completa (levando em consideração que Virgílio morreu sem terminar a obra) em seus 12 longos cantos.

Como toda epopéia tradicional, a Eneida possui uma Proposição ao tema (narrativa de Eneias) e em seguida um Invocação às musas pedindo inspiração. Eneida começa in media res, já enquanto Eneias está em alto mar, após a guerra de Tróia. No primeiro canto conhecemos Eneias e Juno, que odeia os troianos. Assim como em Os Lusíadas, em Eneida há uma assembleia dos deuses e Vênus está ao lado dos troianos enquanto Juno lhes quer a destruição (nos Lusíadas Juno é substituida por Baco, provavelmente devido a imagem de sátiro e orgiástica do deus do vinho). Há uma tempestade no mar e Eneias conhece a rainha e viuva Dido, para quem narra o passado de sua nação. Em Os Lusíadas Vasco da Gama também narra o passado de sua nação até a hora da partida, entretanto, em Eneida a narração foca-se na guerra de tróia e seus acontecimentos, culminando na queda da nação troiana.  Toda essa narração dura dois cantos inteiros (II e III).

Até esse ponto, chegamos a duas grandes conclusões (além de que o livro é dificílimo de se ler). A primeira é que de todos os heróis épicos que conheço (Aquiles, Ulisses, Beowulf, Siegmund, Siegfried, Arthur, Lancelot, Amadis de Gaula, Hércules, Teseu, Vasco da Gama entre outros), Eneias é o PIOR herói que já vi. Não é por sua falta de caráter (que vocês verão mais a frente), mas por não ser nem um pouco carismático, além de ter o hábito de argumentar seu heroísmo, ao invés de ser heróico de fato. Não gosto de Eneias e pronto. E a segunda observação é que Eneida é fraca na descrição dos cenários e acontecimentos. As batalhas narradas por Eneias são sem vida.

Mas não devemos desistir do livro, pois, se Eneida está até hoje no cânone, há de haver algum motivo. Além disso, não iniciamos o 4º canto. Apesar do personagem principal e da narração do mesmo serem fracas, há até aqui duas grandes personagens, pelo qual valeria a pena ler o livro inteiro. Por coincidência, as duas são personagens femininas: Juno e Vênus. Nunca na literatura antiga foi criado personagens femininos dessa grandeza, nem mesmo na lírica de safo. Por algum motivo, o ódio de Juno (e o amor de Vênus) pelos troianos ainda está ligada à competição da beleza incitada por Éris, por isso ambas desejam possuir o destino pela nação de Páris e ambas desejam contrariar a outra. Vênus e Juno são como irmãs opostas, e Jupter assume o papel de pacificador. Juno representa mais, representa a vingança e poder feminino sobre a natureza e o destino, e é genial. Falo mais sobre elas a seguir.

No quarto canto, Dido ama Enéias, que a possui e depois decide abandoná-la. Nem mesmo essa atitude faz dele um melhor personagem, pois Eneias não abandona por vontade, nem objeta. O herói é a todo momento manipulado, seja pelos deuses ou familiares. De qualquer modo, esse episódio lembra a ilha nínfica onde Ulísses se perde, embora Ulísses seja mais heróico do que Enéias, e o ambiente é mais bem escrito por Homero que por Virgílio. Há também uma certa relação com os lotófagos da Odisseia e com a emboscada dos Lusíadas.

Dido pela primeira vez aparece aqui como grande figura. Decide amar Enéias (péssima escolha, adimito, mas é uma decisão firme) e deseja torná-lo rei. Possui um lirismo amoroso brilhante na fala, e quando Eneias informa que vai partir, vemos o lado autoritário de Dido, que surge como quase projeção terrena de Juno (mas Juno será ainda mais impressionante):
[Dido:]"Nem mãe deusa, nem Dárdano hás por tronco;
Gerou-te o Cáucaso em penhascos duros,
Traidor! mamaste nas hircanas tigres.
Que dissímulo? a que desdém me guardo?
Deu-me ao pranto uma lágrima, um suspiro?
Da amante se doeu? dignou-se a olhar-me?
Que afronta é mais pungente?... Ah que até Juno
Nem Satúrnio isto vê com rectos olhos.
Fé segura não há. Náufrago e pobre
O recolhi, demente o pus no trono,
Do estrago as naus remi, da morte os sócios.
[...] Com negro facho ao longe hei-de acercar-te;
E, quando a morte fria aos órgãos solva
O almo alento, ser-te-ei contínua sombra,
Terás o pago, hei-de, perverso, ouvi-lo,
A nova há-de baixar-me ao centro escuro."
(p.182)
 Mas a atitude de Dido não fica em seu discurso autoritário. Dido é uma representação magnífica, e após a partida de Eneias, Dido suicida-se. Seu suicídio não aparece aí como a fraqueza feminina, mas como sua força. Se você leu Os Sofrimentos do Jovem Werter e não se convenceu de que o suicídio é prova de força e não fraqueza, deve ler Eneida, e, ao menos nesse caso específico (o suicídio de Dido) não pode-se dizer que há fraqueza. Há a força devoradora de Juno. Dido busca controlar o destino, e sacrifica-se, por ódio e destruição, não pelo sofrimento.
[...] Em cróceas penas,
Cambiando cores mil do Sol oposto,
Róscida a núncia vem parar sobre ela:
"O tributo a Plutão mandada levo;
Do corpo eu to desligo." Disse, e o corta:
Foi-se o calor e evaporou-se a vida.
(p.191)
 No 5º canto temos Eneias na Sicília, onde fazem jogos (e há várias referências que dificultam a leitura) e deixam as mulheres, os velhos e os desencorajados. Nesse canto temos uma belíssima alusão de Vênus à Juno, onde Vênus pede proteção de Netuno contra a ira de Juno. Mais uma vez, fico encantado pelo atrito de ambas.
Entretanto, a Neptuno aflita Vénus
Tais queixas despregou: "Senhor, a activa
Atroz ira de Juno insaciável
Me abate a suplicar. Nem dó, nem tempo,
Jove nem destino, infandos ódios
Quebra ou lhe adoça. Haver não basta aos Frígios
Consumido e apagado a grã cidade,
E as relíquias trazer de transe em transe;
De Tróia inda persegue a cinza e os ossos:
Desta sanha o motivo ela que o saiba.
 Após a partida, há a cena da decida aos infernos, onde Eneias antevê a grandeza de Roma, a nação que ele ajudará a fundar na Itália. Não é a criatividade o ponto mais forte dessa passagem, pois Ulísses também dece aos infernos em Odisséia, assim como Orfeu, Hércules e uma centena de heróis. O que me incomoda nessa passagem é que praticamente todo herói greco-romano deve ir ao inferno ao menos uma vez na vida para ser herói, e Eneias aparentemente só vai para o domínio de Plutão para legitirmar-se como heroi. A desculpa é ver seu pai. A decida de Eneias é bastante sem graça, e sua preparação é fraca. Eneias se utiliza de uma estrutura argumentativa para que se faça a relação Heroísmo->Inferno, estrutura essa que se repete em os Lusíadas. Ambos procuram legitimar o heroísmo da nação a partir da comparação entre os feitos de heróis com seus personagens. Duvida? Veja essa passagem:
Pois que é do inferno a entrada e aqui, me afirmam,
Do revesso Aqueronte o lago obscuro,
Ir, só te imploro, ao caro pai me caiba:
Mostra-me e patenteia as sacras portas.
Eu, nestes ombros, dentre a chama e infindas
Chuças hostis o arrebatei, salvei-o;
Ele enfermo comigo afrontou mares,
O pélago aturava e o céu minazes,
Com mais vigor de que à velhice é dado.
Requerendo ordenou-mo, e humilde que hajas
Dó do filho e do pai deprecar venho:
Tudo se te faculta; Hecate embalde
Não te propôs, ó casta, ao luco averno.
Se Orfeu pôde avocar da esposa os manes,
Em trácia acorde cítara fiando;
Se, com alterna morte o irmão remindo,
Pólux tanto essa via anda e desanda,
(Por que a Teseu citar e o grande Alcídes?)
Eu provenho também do rei supremo."
(p.222)
 Lembra-me quando Camões compara as histórias portuguesas com as gregas, romanas e hebraicas, a fim de legitimar portugal como um império heróico. No inferno Eneias vê o futuro de roma e a glória de Augusto César, parte notadamente política da obra, levando em consideração que o imperador Augusto era amigo pessoal de Virgílio, e autor da ideia de uma epopéia nacional. O mesmo acontece com os Lusíadas, só que Augusto é substituido pelo rei Sebastião e o inferno é substituído por um "paraíso" (lembrando que para os latinos só havia um mundo dos mortos), onde Gama vê o futuro glorioso de portugal pela "máquina do mundo".

Eneias chega à Itália, mas juno incita uma guerra entre Turno e Eneias, e assim como predisse Vênus, deseja a destruição completa dos troianos. É uma guerra violenta, e Vênus ajuda Eneias. Durante a ausência de enéias, os italianos atacam o acampamento troiano, que resistem bravamente. Nessa cena morre Niso e Euríalo, e é a morte heróica mais sem graça que eu já vi. Eneias volta e pela primeira vez dá uma prova melhor de heroísmo, apesar de ainda ser o mesmo Eneias manipulado de sempre. Antes da volta de Eneias, novamente há uma assembleia dos deuses, onde Jupter assume o papel do destino, e decreta o fim da guerra (Juno não fica satisfeita).
[Juno:]"[...] Roubar da aquiva garra o filho podes.
Por vã névoa trocá-lo; a frota em nínfas
Tu podes converter: um pouco a Turno
Socorrermos é crime. Eneias tudo
Ausente ignora: pois ignore ausente.
Que! tens Pafos, Citera, Idálio; e tentas
Um chão de guerras prenhe e a peitos feros?
Nós de Ílio os débeis restos subvertemos,
Ou quem míseros Troas contra os Gregos
Açulou? Foi por nós que o rapto armado
Solvera de Ásia e Europa as alianças?
Que o Frigio adúltero expugnara Esparta?
Eu lides fomentei com paixões torpes?
Teu medo então convinha: tarde surges
Com injusto queixume e fútil bulha."
(p.313)
 Me tornei fã dessa mulher. Olhem o poder de argumentação, as paixões na fala, a ira contra Vênus. Essa resposta à ordem jupteriana faz a relação completa do ódio de Juno pelos troianos. É na verdade o ódio por Vênus, que os defende desde o incidente com Éris, e mais que isso, põe a culpa em cima de Vênus, e pelos argumentos, vemos que de fato a deusa do amor tem culpa. Depois da esclarecedora passagem, Eneias volta e os troianos começam a vencer os italianos. Turno vence mais um herói troiano, mas é perseguido por Eneias. Juno implora para salvar Turno, e Jupter concede esse direito; Turno então é salvo por Juno.

Há uma trégua e sepultamento dos mortos. Há uma discussão interna entre os italianos, se deixam os troianos em paz, se deixam-se unir a eles, ou se continuam o combate. Há muitas perdas de ambos os lados. Juno incita mais uma vez o combate entre Eneias e Turno, o que me faz pensar que Jupter não encarna bem o papel de "destino", nem possui poder de controle grande sobre os deuses olímpicos. Mas Juno é uma personagem mais forte.

Turno e Eneias decidem resolver a guerra com um combate singular, que decidirá se Eneias se casará com Lavínia (filha do rei) e terá aliança eterna com os latinos, ou se vai embora para nunca mais voltar. Como Eneias é o heroi da epopéia e ainda estamos no século I antes da era cristã, Eneias vence a luta. Apesar de vencer a luta, a decisão foi tomada no plano superior (o que mostra que Eneias não tem o controle sobre seu destino), e Juno, derrotada, sai vitoriosa. A ultima palavra entre os deuses é de Juno, que se cansa de se envolver na guerra mortal, e opita pela vitória de Eneias, entretanto, seu poder destrutivo e vingativo ainda se faz presente de forma poderosa. Eis quem decide o destino mortal:
[Juno:] "Teu querer conhecendo, eu constrangida
Abandonei, senhor, a turno e o mundo;
Senão, curtindo ultrajes, não me viras
Neste ar sòzinha, mas na acção, de flamas
Cingida, em prélios consumindo os Frígios. [...]
Desisto alfim; batalhas já me enojam.
Favor obsecro não sujeito aos fados,
Pede-o Itália e dos teus a majestade:
Casamentos embora a paz componham,
E leis o pacto asselem; não permitas
Que os Latinos indígenas, perdido
O antigo nome, Teucros se apelidem,
Nem mudem língua e trajo. Eterno viva
O Lácio, os reis Albanos; herde Roma
O itálico valor, propague e brilhe:
Tróia acabou, também seu nome acabe."
(p.384)
O poder e personalidade de Juno são formidáveis. Finaliza-se o conflito e o livro.

Para quem se interessar por essa tradução, está disponível gratuitamente no Instituto Odorico Mendes, além de ser editada até hoje. Odorico foi o primeiro a traduzir a Eneida em português, além de traduzir a Odisseia e a Ilíada. Minha edição é da antiga W.M.Jackson Editores, e NÃO CONTÉM NOTAS, nem nº de versos, que outras edições vão possuir. Foi um prezer ler esse livro, pois, muito mais que um entretenimento, desafiou a minha capacidade intelectual. Já disse aqui como amo livros que desafiam a nossa inteligência, e esse é um deles. Foi maravilhoso também conhecer essa representação de Juno, que é magnífica (apesar do herói absolutamente sem carisma).

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

Nota do Elaphar: 9,6

Edição Lida:
VIRGÍLIO. Geórgicas & Eneida. Trad: António Feliciano de Castilho & Odorico Mendes. São Paulo: W.M.Jackson, 1949, 391p

quarta-feira, 23 de março de 2011

O Juiz e seu Carrasco - Friedrich Dürrenmatt

No início do mês falei que março seria um mês Alemão, e agora vos apresento Dürrenmatt (que não é alemão e sim suíço, mas de língua alemã). Para quem não conhece, Friedrich Dürrenmatt é um escritor (principalmente de teatro) contemporâneo bastante famoso nos países germanófonos, mas aqui no Brasil bem pouco lido. Ao que me consta, em língua portugesa temos apenas O Juiz e Seu Carrasco e 3 contos (A Pane, O Túnel e O Cão) reunidos em um lívro e em duas antologias, além de um texto teórico sobre o teatro (Problemas do Teatro) que não nos interessa no presente momento.

O Juiz e seu Carrasco é uma novela policial, uma das especialidades do autor, que conta a história de um polícial que foi assassinado sob circunstâncias misteriosas. O comissário Bärlach decide investigar essa morte, e devido à pressões internas, acaba tendo de aceitar por companheiro Tschanz, policial criminalisticamente exemplar. Somam-se aos personagens a família de Schmied, o policial Clenin (que descobre o corpo de Schmied) e outras figuras. Além disso, cada personagem possui uma história obscura, principalmente Bärlach, que possui uma competição antiga, que se resolve nesse livro.

O livro é profundo no psicológico das personagens e complexo em suas ligações. Há no livro a presença de vários conflitos, entre eles a luta contra a morte (Bärlach está muito doente, quase morto), contra as intrigas policiais, contra o passado, contra a dicotomia justiça-crime.

Vou ser bastante franco, como é de meu feitiu. Minha primeira impressão do livro não foi boa, a história parecia banal, os personagens me pareceram (à primeira vista) artificiais e a linguagem sem nada de especial. Entretanto, uma coisa é fato, nunca um romance policial havia me surpreendido em seu desfecho (exceto os dois primeiros que li, a saber: As Aventuras de Sherlock Holms e Um Estudo em Vermelho de Doyle). Nem Simenon, nem Piglia, nem Doyle, nem Greene, nem Dan Brown nem nenhum outro escritor ou história policial me foram surpreendentes nesses 5 anos e meio de leitura. Dan Brown nos dá em seus livros (exceto Ponto de Impacto, que não posso julgar pois não li) o desfecho e o criminoso no meio do livro; em Fortaleza Digital sabemos desde o 10º capítulo quem manda o assassino e porque assim como é óbvio que a senha do vírus é 3 (a partir da dica absurda dada), e não consigo entender como os personagens são idiotas a ponto de não perceberem isso. Em O Terceiro Homem de Greene, podemos deduzir que lime está vivo desde a descoberta de um "terceiro homem". O mesmo acontece em Simenon, Doyle, Píglia e diversos autores nacionais.

Não me entendam mal, sou fã de romances policiais e criminais, eles só nunca conseguem me surpreender. O diferencial não está no desfecho surpreendente, mas na criatividade da história (e seus pormenores) e na linguagem. Em O Juiz e seu Carrasco os personagens e as intrigas são bem interessantes, mas o que me chocou foi o fato de não ter conseguido predizer os 2 ultimos capítulos do livro. Durante todo o desenrolar da história, fui chegando a conclusões cada vez mais concretas, e das duas possibilidades que cogitei uma vi concretizada no 19º capítulo... para no fim descobrir que estava errado. O ponto forte do escritor é não "inocentar" ou "descentralizar" o desfecho da narrativa, mas atravez da linguagem elaborada nos focalizar em partes específicas da narrativa, e assim as provas (que estão para um desfecho) são vistas sob outro ângulo.

Se o forte de uma narrativa policial deve ser a surpresa, essa é a melhor que já li até hoje. Mas (sempre tem um mas), ainda há uma coisa que falta nesse livro, pois não consegui gostar tanto dele ainda assim. A surpresa compensou minha leitura quase forçada, mas não a anulou. Se me perguntarem hoje para escolher entre O Juiz e seu Carrasco de Friedrich Dürrenmatt e O Terceiro Homem de Grahan Greene, optarei por ambos. O primeiro ganha pela surpresa, a profundidade psicológica e os conflitos, o segundo pela criatividade da história, por como ela é desenrolada e o carisma dos personagens. Ambas as histórias são sombrias e cômicas ao mesmo tempo.

Avaliação final: Não é perda de tempo ler esse livro, pois é uma esperiência nova, além de que o livro é barato (8 R$) e curto (112pgs em formaton de bolso). A edição da L&PM como sempre, a melhor da categoria.

Nota do Elaphar: 8,6

Edição Lida:
DÜRRENMATT, Friedrich. O Juiz e seu Carrasco. Trad: Kurt Jahn. Porto Alegre: L&PM, 2008, 112p. (L&PM Pocket Plus, 681)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Fernão Capelo Gaivota (Jonathan Livingston Seagull) - Richard Bach

Fernão Capelo Gaivota (Jonathan Livingston Seagull) é um BestSeller americano escrito pelo piloto/escritor Richard Bach. Todos os livros de Bach envolvem (direta ou indiretamente) o voo, e Fernão Capelo Gaivota não é diferente. Vendeu milhares de cópias, foi publicado em diversos países, ganhando inumeras traduções; sorte que os outros livros do autor não tiveram. O Brasil traduziu mais da metade das obras do escritor, mas ainda há livros inéditos. Alguns devem se perguntar porque coloquei o título em português e inglês, se não tenho o hábito de fazê-lo. Irei responder em breve.

A primeira impressão que tive ao ler esse livro foi: Tem alguma coisa errada com essa tradução! Como estava sem computador, continuei a leitura normalmente, mas hoje li parcialmente (mais da metade do livro) a versão britânica (da Element, daí o título nas duas línguas), e aí cheguei a uma nova conclusão: não havia nada de errado com a tradução! o livro é isso mesmo. Não consigo entender o porquê do sucesso do livro. Não há nada de mais nele.

A história é uma grande fábula, que conta a história de Fernão Capelo (ou Jonathan Livingston), que é uma gaivota ansiosa por "aprender" a voar, e é banida por suas atitudes. Minha primeira crítica contra essa obra é quanto a linguagem utilizada. Muito do que está escrito no livro é completamente inútil para a própria compreensão da obra, isto é, há muitas passagens que não são essenciais. Ainda tratando da linguagem, muitas imagens evocadas por Bach são ridículas, distoantes do contexto original, e muitas vezes ele cria aforismos de péssima qualidade.
A mile  from  shore  a  fishing boat chummed the water, and the  word  for  Breakfast  Flock  flashed through the air, till a crowd  of  a  thousand  seagulls  came  to  dodge  and  fight for bits of food. It was another busy day beginning.
A história não é original, mas não é de todo ruim. É uma fábula (com acréscimos desnecessários, mais ainda assim fábula) como outra qualquer, incluindo a questão moralizante. Não sou fã de literatura com finalidade moralizante, mas também não tenho nada contra elas.

Muitos consideram Fernão Capelo Gaivota (Jonathan Livingston Seagull) como obra filosófica e seu escritor como um grande filósofo, mas isso está muito longe de se aproximar da verdade. De fato, há filosofia presente em FCG (JLS), mas não a filosofia de Bach, mas sim um tipo de neoplatonismo "popular", no que se refere à ilusão do mundo sensível e às ideias geradoras. Provavelmente (esse é uma opinião minha), Richard Bach conheceu platão a partir da filosofia escolástica agostiniana, pois suas ideias estão repletas de Agostinho de Hipona, mas de uma forma ou de outra, Bach não dialoga com a filosofia, mas sim acrescenta-a ao seu livro de forma bastante vulgar (como é usada por Bach [ordinary], no sentido de comum). Jamais posso considerar Bach como filósofo, pois a filosofia presente no livro é reproduzida e não desenvolvida.

Ainda detonando o livro, além da linguagem, da acriatividade e da "filosofia" do livro, a história não me cativou nem um pouco. O espaço da narrativa é pobre até mesmo para a proposta do livro (de simplicidade e pouca descritividade), a narração é fraca e malfeita (em decorrencia da linguagem) e os personagens são péssimos estereótipos, retirados da bíblia cristã. Bach propõe um Fernão "quase-profeta", mas diferente dos livros sagrados, carece de uma boa psicologia em sua criação. Comparando a psicologia de Jonas, Daniel ou Paulo com Fernão vemos o quanto Bach foi infeliz em sua criação (isso considerando os Jonas, Daniel e Paulo como PERSONAGENS e seus textos como CRIAÇÃO LITERÁRIA). Creio que a pouca descritividade dos ambientes também decorra de influência do Tanakh, mas novamente foi infeliz. O que é descrito por Bach geralmente é desnecessário. E por fim, a tradução brasileira em alguns momentos gera passagens que parecem de um português alienígena.

Agor a, vou falar um pouco das coisas boas do livro. A linguagem (mesmo ruim) é simples, e permite uma leitura rápida e sem ter de repetir pontos do livro (como em uma leitura mais elaborada, como Ulysses). O livro é curtíssimo, pequeno, com margens e fonte grande e com páginas e páginas de fotos, o que permite que eu afirme que não perdi nem uma hora do meu tempo lendo esse livro. As fotos (para quem é fã da arte da fotografia) de Russell Munson são muito boas, e a tradução é competente (apesar de umas passagens ou outras serem esquisitas). É um livro que não possui nada de mais, e, entre esse e Ilusões (do mesmo autor), fico com o segundo. Em breve resenho Ilusões.

Essa resenha faz parte do Desafio Literário. Para conferir a minha lista do desafio clique aqui. Para conferir a lista de Março Clique aqui.


Nota do Elaphar: 7,3

Edições Lidas:
BACH, Richard. Fernão Capelo Gaivota. Fotografias de Russell Munson. Trad: Antônio Ramos Rosa e Madalena Rosález. Rio de Janeiro: Nórdica, [s/d], 152p.

BACH, Richard. Jonathan Livingston Seagull. Photography by Russell Munson. Hammersmith[London]: Element Press, 2003.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Geórgicas - Virgílio (Trad: Feliciano de Castilho)


Acho muito difícil alguem não conhecer (ou ao menos nunca ter ouvido falar em) Virgílio. Poeta latino, Publius Virgilius Maro é considerado (ao lado de Horácio e Ovídio) o maior dos escritores latinos, e sua poesia é modelar. Camões se baseou em Virgílio ao compor seu Os Lusíadas, e Dante faz uma grande homenagem ao poeta em sua Divina Comédia. Escolhi Virgílio para o Desafio Literário de Março justamente por ser esse escritor um modelo, e escolhi Geórgicas e não Eneida (que está como bônus do mês) pois costumo resenhar alguns "clássicos" pelo seu livro menos conhecido. Assim foi com Camus (primeira resenha: A Queda), Lindanor Celina (A Viajante e Seus Espantos), Thomas Mann (Tônio Kroeger), Machado de Assis (Memorial de Aires) e assim por diante.

Agora, uma coisa é importante dizer: Geórgicas NÃO É UM LIVRO ÉPICO, mas isso não tinha como eu saber antes da leitura do livro. Embora o livro seja construido em uma estrutura de poema épico (grandes poemas divididos em cantos), possua uma Invocação, Dedicatória e Epílogo, e há nessa obra a questão da busca pela identidade, assim como a descrição da natureza e dos mitos locais; falta em Geórgicas um elemento fundamental da épica: um Heroi (apesar de no 4º canto haver uma narrativa proto-épica contando a história de Orfeu).

Então vamos à obra! Geórgicas é um livro didático (para a época romana), onde fala dos campos, da natureza, dos métodos de colheita, da história da agricultura e das superstições religiosas envolvendo a zona rural. Algumas passagens são curiosas como:
Dias bons, e outros maus, traz o variar da lua.
Evita sempre o quinto a qualquer obra tua:
nasceram nele o Orco, e as Fúrias; nele a Terra
deu à luz contra os céus, prenhe de infanda guerra, [...]

O décimo, e após ele o sétimo, é de estreias:
bacela; amansa bois; enliça o ordume às teias.
Dentre os quatro livros (ou cantos) o mais interessante com decerto é o 4º, onde Virgílio fala de abelhas. A temática pode parecer banal, mas a poeticidade é singular. No 4º livro também há uma espécie de narrativa sobre Orfeu.

A edição que possuo é bem antiga (o liv ro mais antigo que possuo). Trata-se da Edição Clássicos (Vol. III) da W.M.Jackson Editores, e data de 1949. A tradução é de António Feliciano de Castilho, e ao que me consta está em Domínio Público (Castilho morreu no século XIX). Apesar dos textos gregos e latinos clássicos não possuirem rimas, as traduções normalmente são rimadas, e a tradução de Castilho é composta toda em rimas emparelhadas (AA,BB,CC,DD e etc...). Castilho também optou pelo Alexandrino (verso de 12 sílabas), levando-se em consideração que a métrica latina é diferente da métrica portuguesa.

Geórgicas é um bom livro, mas não mostra todo o potencial de Virgílio, nem justifica sua influência em toda a cultura ocidental. Isso provavelmente só vai ser justificado com a leitura de Eneida.

Essa resenha faz parte do Desafio Literário. Para conferir a minha lista do desafio clique aqui. Para conferir a lista de Março Clique aqui.

Nota do Elaphar: 8,3

Edição Lida:
VIRGÍLIO. Geórgicas & Eneida. Trad: António Feliciano de Castilho & Odorico Mendes. São Paulo: W.M.Jackson, 1949, 391p

terça-feira, 15 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Siegfried) - Richard Wagner

Me propus realizar a homérica missão de resenhar todo o ciclo do Anel dos Nibelungos de Richard Wagner, e já estou no 3º, a ópera Siegfried. A obra está sob a forma de Libretto, que em italiano quer dizer brochura (que segundo a ABNT, se aplica às publicações com menos de 60 páginas, desconsiderando capas), mas, apesar do pequeno tamanho, a obra está em verso e possui uma riquesa lírico-narrativa impressionante. É em Siegfried que aparece um dos personagens mais representativos da mitologia teutônica, que está massificadamente presente na cultura popular, e que é o herói principal da série. O Siegfried de Wagner, diferente de outras versões, é filho de Siegmund com sua irmã (os dois são volsungas, ou Wälsung, tanto faz), o que faz de Siegfried neto de Wotan duas vezes (por parte de pai e de mãe). Entre Die Walkürie e Siegfried, Sieglinde vai até próximo da caverna de Fafner e encontra o nibelungo Mime (irmão de Alberich), que cria Siegfried até seu crescimento. Se vocês já assistiram o filme O Anel dos Nibelungos, esqueça-o, pois, Mime (pai adotivo de Siegfried) não é bom. Deseja que Siegfried pegue o anel e planeja matá-lo. Mas, vamos para a história.

Primeira cena do primeiro ato. Mime está com raiva pois está preparando uma espada para Siegfried, mas sabe que o jovem quebrará a arma assim que estiver pronta. O nibelungo sonha obter o Anel e o Tarnhelm (helmo que transforma), e para isso precisa de Siegfried. O jovem chega com um URSO encoleirado, e brinca com o urso como se este fosse um Poodle. Depois ele quebra a espada pronta como se fosse uma vareta de bambu, o que deixa Mime puto de raiva. Mime conta a história de Siegfried (pois o jovem o ameaçou), mas sem lhe contar a história do pai. Mime mostra os fragmentos da escali... ops, digo Notung e Siegfried fica animado, pedindo para que Mime reconstrua a espada.

Duas coisas podemos perceber a partir da leitura e audição da primeira cena. A primeira é que Siegfried não é tão monumental (músicalmente) quanto Die Walkürie, e que a dramatização é mais importante do que as narrativas e lirismo. É a obra mais dramática das quatro óperas, e ao mesmo tempo a mais épica. A segunda é que Siegfried é o heroi com mais testosterona da história da literatura (mais até do que Lance e Bill [Contra]). Não é qualquer um que brinca com um ursinho de estimação e quebra uma espada de metal feita por um nibelungo como se fosse de plástico... e olha que só estamos começando. Siegfried poderia ser até capa dos CDs do Manowar.

Na segunda cena, Wotan aparece e provoca Mime, dizendo ao final que apenas quem não conhece o medo poderá forjar a espada Notung (,,Nur wer das Fürchten/nie erfuhr,/schmiedet Notung neu.”), e assim passa para a 3ª cena, onde entra Siegfried e pede a espada, que Mime não conseguiu forjar. Como Siegfried não conhece o medo, ele mesmo forja a espada e para testá-la parte uma bigorna meio (Gott!!! Quanta testosterona!!!).

No segundo ato, Alberich espreita Fafner (agora transformado em dragão), quando surge Wotan e avisa a Fafner que vem alguem matá-lo. Fafner não se importa e na segunda cena Siegfried aparece e mata o dragão, que conta sua história. Após matar o dragão, Siegfried bebe o seu sangue e ganha o poder clarividente de falar com as aves (mais uma diferença da versão wagneriana e do Nibelungenlied). Siegfried então descobre o que Mime planejava e mata-o, conversando em seguida com uma ave que lhe fala sobre Brünnhilde. Siegfried se prepara para mais uma prova de bravura.

Na primeira cena do último ato, Wotan invoca a deusa da Terra (novamente aconselho a gravação do Karajan, pois, que voz para Erda...) e conversa com ela. Esse diálogo é muito legal de se ler, mas ele não cria mudanças significativas no enredo. Está aqui como dica. Em seguida (Segunda Cena), Siegfried encontra Wotan (que não saiu do lugar), e há uma discussão entre eles. Wotan afirma que já quebrou a Notung uma vez e pode fazê-lo novamente (Das Schwert, das du schwingst,/erschlug einst dieser Schaft:/noch einmal denn/zerspring es am ew’gen Speer!), mas Siegfried quebra a lança e Wotan recolhe os pedaços tranquilamente e desaparece. Os diálogos desta cena são bons, mas não gosto muito desse final...

E por fim, Siegfried encontra Brünnhilde, e não sabe o que fazer com ela (pois nunca viu uma mulher na vida). Perdoo o Siegfried, pois quando era mais novo, provavelmente não saberia o que fazer se uma Valkíria caísse nos meus braços (provavelmente a chamaria para jogar Super Mario ou Bomberman). Após o beijo, Brünnhilde acorda e pergunta quem é o heroi, que prontamente se identifica. Brünnhild conta que salvou a vida dele antes, e Siegfried cogita ser Brünnhild sua mãe, o que é logo desmentido. Brünnhild ainda faz-se de difícil por um tempinho, mas logo rende-se ao amor do guerreiro volsunga cheio de testosterona. Fim da ópera.

Para concluir, embora Siegfried seja musicalmente e liricamente mais fraco que Die Walkürie, possui uma parte inportante da história. Apesar disso, os detalhes da narrativa deixam a desejar, além dos personagens. Fafner, Brünnhild e Siegfried são muito vazios nessa ópera, e Fafner não é o mesmo de Das Rheingold nem Brünnhild é a mesma de Die Walkürie. O destaque absoluto vai para Wotan, que mostra-se diferente e interessante (até certo ponto cínico), mas em geral, faltou um trabalho psicológico maior nos personagens, diferente do que ocorre nas óperas anteriores. Brincadeiras a parte, o Siegfried de Siegfried é um estereótipo de super-guerreiro-bombado-vazio (supergepumptleerkrieger), que não me agradou, mas ainda tenho ótimas espectatívas para o Götterdammerung. Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Die Walkürie) - Richard Wagner

Quando planejei resenhar o ciclo de óperas de Wagner, imaginei que iam me atacar, mas aparentemente isso não aconteceu (ainda). Acho que antes de falar da mais impressionante obra dramático-literário-musical do romantismo alemão (a segunda parte do ciclo O Anel dos Nibelungos), devo prestar alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, a rigor, nenhuma das obras do ciclo (ou série, se preferir) do Anel dos Nibelungos é épica, lírica ou drama, ao mesmo tempo que é todas as 3. Por um lado, a obra foi escrita para ser encenada (Drama) e o narrador se apaga (Drama), por outra, a obra é feita em versos ao estilo épico (Épica) e a música assume o papel de narrar os acontecimentos, o que faz com que o narrador não se apague tanto como no drama, o que o aproxima do gênero épico. Apesar do desfecho trágico de algumas partes da obra (como o fraticídio de Fafner, a morte de Siegmund ou a Imolação dos Deuses), outras representam conquistas heróicas (como a vitória de Siegfried contra o Dragão). Das 3 características que disse em um post anterior, todas se encaixam perfeitamente nessa obra. Lembrem-se também que as primeiras obras épicas foram feitas para serem cantadas, e o maior épico medieval alemão (Nibelungenlied) leva o nome Canção (Lied) e conta a mesma história, de forma diferente.

Há outras questões a tratar, dentre elas, o fato de eu já conhecer de longa data a música e a história, entretanto, nunca havia lido o texto literário (sob a forma do Libretto). De qualquer modo, estou dentro da proposta do desafio, pois nunca havia lido o libretto. Isso me deixou um pouco decepcionado, pois a parte musical da obra é muito superior à literária (se um wagneriano ouvir isto estarei morto amanhã mesmo). E por fim, os librettos dessa obra são extremamente curtos, em contrapartida, são profundos e devem ser analisados e interpretados junto da música. Além do mais, os libretos estão em ALEMÃO (disponível gratuitamente aqui), mas há uma tradução em portugues aqui, que peca em poeticidade. Por isso, estou lendo a partir do inglês (está no meu celular) com consultas breves em alemão. Apesar do que as pessoas dizem, alemão não é tão difícil, e a prova está aqui.

Die Walkürie (As Valkírias) é o inicio da obra propriamente dito. Enquanto Das Rheingold introduz falando sobre a história do Anel, a maldição de Alberich entre outros pormenores, Die Walkürie foca-se na história dos Volsungas (Wälsung no original, filhos de Wotan disfarsado como Volsa [Wälse] ) e da Walkíria Brünnhilde. A obra se inicia com uma narração orquestral (Prelúdio), e dá-se o encontro entre Siegmund e Sieglinde, que são irmãos gêmeos (embora não saibam disso). Há na primeira cena um caso raro nas óperas wagnerianas, onde uma cena contém apenas dois personagens.

Na segunda cena aparece Hunding, que é esposo de Sieglinde e futuro corno. Há uma relação bastante amistosa antre Siegmund e Hunding, pelo menos à primeira vista. Siegmund conta sua história, e como veio parar lá, e Hunding percebe que Siegmund é seu inimigo. Há uma certa tensão no ar (isso pode ser percebido pela música). A narrativa de Siegmund é muito legal, apesar disso, Hunding o chama para um combate (pois são inimigos), mas, apesar de tudo, o deixa ficar a noite em sua casa, pois ofereceu sua hospitalidade, e não pode faltar com sua palavra. Vocês já leram uma piada sobre os tipos de cornos? Não lembro direito, então, se alguem souber o tipo de Hunding, postem nos comentários e ficarei grato.

A terceira cena do primeiro ato é simplesmente uma das melhores cenas que já vi em uma obra dramática, chegando bem próximo de muitas cenas shakesperianas e quase se igualando à primeira cena do último ato desta mesma obra. Nela há o Monólogo de Siegmund (esqueci de avisar que o heroi não lembra o próprio nome), onde nosso heroi lembra da promessa de seu pai Volsa (Wotan, Wälse ou qualquer outro nome) de lhe dar uma espada quando estivesse precisando mais. Além do Monólogo de Siegmund, na terceira cena Siegmund lembra seu nome (e ganha uma identidade), toma sua irmã por esposa e pega a espada de seu pai, que estava cravada (algo similar ao rei Arthur não?). A terceira cena do primeiro ato de Die Walkürie é também uma das mais líricas, tanto no Monólogo de Siegmund quanto no poema de amor de Sieglinde (Du bist der Lenz,/nach dem ich verlangte/in frostigen Winters Frist./Dich grüßte mein Herz/mit heiligen Grau’n,/als dein Blick zuerst mir erblühte.[...]). É aqui que estão algumas das principais modificações wagnerianas para o mito, sendo que, em Wagner, Siegfried é filho desse relacionamento incestuoso.

Em seguida (no segundo ato) segue o verdadeiro drama. De forma bem rápida, no ato há o diálogo entre Wotan e Brünnhilde (ô nome difícil de escrever), onde o deus pai revela seus planos. Brünnhilde é a valkíria preferida de Wotan, e lhe dá a missão de matar Hunding (as valkírias são responsáveis por decidir os conflitos, escolhendo quais combatentes irão morrer e leva-los para o Walhalla). A esposa de Wotan (Fricka, deusa protetora dos matrimônios) aparece e impede os planos do deus pai, obrigando-o a proteger o casament de Hunding e Sieglinde e matar Siegmund. Contrariado, mas obediente, ordena então que Brünnhilde deve matar Siegmund. Esta cena não é tão poética quanto a anterior, mas musicalmente é muito mais poderosa e exagerada (característica de Wagner). Aparece aqui pela primeira vez o grito de guerra das valkírias (Hojotoho! Heiaha!). Em contrapartida, a parte narrativa desta cena é muito importante, o que me esclareceu alguns pontos que não conhecia da versão wagneriana do mito (valeu DL! Vi como é importante ler as obras aqui). Ainda no mesmo ato, acontece a fuga dos Volsungas, onde Sieglinde se considera um estorvo e possui a premonição de que Siegmund será dilacerado no combate, enquanto Siegmund está confiante pois possui a Notung (espada que ele pegou mais acima). Brünnhild aparece para Siegmund informando que ele a acompanhará em breve (isso é, morrerá), e Siegmund a convence de matar Hunding. Brünnhilde aceita, pois, acha que a vontade do pai é essa e está preparada para desobedecer ao pai para cumprir sua vontade.... entretanto, quando está preparada para agir (após a chegada de Hunding na quinta cena) aparece Wotan cheio de raiva quebrando a Notung e matando seu filho pessoalmente. Brünnhilde foge com Sieglinde (se seu filho na barriga) enquanto Hunding morre, após o despreso de Wotan. Esse ato é dinamicíssimo, acontecendo a maior parte da ação.

E vem o terceiro ato, que inicia-se com uma das músicas mais famosas da história, esta:

A Cavalgada das Valkírias é simplesmente sensacional, o que esplica sua popularidade. As valkírias estão carregando os herois mortos em combate, e procuram por Brünnhilde, que surge desesperada carregando Sieglinde. A voz de Brünnhilde é impressionante, e novamente recomendo a gravação de Herbert von Karajan da Filarmônica de Viena. As valkírias se recusam a ajudar Brünnhilde, pois não podem desobedecer Wotan, mas aceitam esconder Sieglinde (na verdade, Sieglinde foge sozinha, sob ordens de Brünnhilde para próximo de Fafner, onde Wotan não pisa. As valkírias aceitam apenas ficar de bico fechado) e até tentam proteger Brünnhilde quando Wotan chega, mas nada pode salvar a valkíria preferida. É interessante mencionar que Brünnhilde escolhe o nome do filho de Sieglinde (Siegfried).

Wotan chega irado e discute com Brünnhilde, que tenta dizer que fez a vontade do deus pai, agind contra as suas ordens. Como Wotan deve punir sua filha, pune-a transformando-a em mortal (soam gritos de protesto das outras valkírias) e com a famosa roda de fogo eterno que só pode ser atravessada pelo mais bravo dos homens (esse castigo surge de uma negociação de punição). Há por fim a despedida do deus Wotan, que em seguida ordena a Loge para que erga a barreira de chamas e termina com a dramática fala: "Wer meines Speeres/Spitze fürchtet,/durchschreite das Feuer nie!" [Quem o fio de minha lança teme, pelo fogo nunca passará].

A história segue então a partir da próxima ópera que chama-se Siegfied (e estou quase terminando de ler). Talvez demore um pouco para postar a ultima parte (Götterdammerung), pois tenho outras coisas para ler (muitas), mas provavelmente termino até o ultimo dia do mês. Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Das Rheingold) - Richard Wagner

"Deutschland, Deutschland über alles" (Primeiro verso do Deutschlandlied)!!! Não falei que esse mês seria alemão? E agora resenharei algumas das mais importantes obras poéticas, dramáticas e musicais da Alemanha, que são as 4 óperas do cíclo O Anel dos Nibelungos (Der Ring des Nibelungen), iniciando com o Das Rheingold (O Ouro do Reno), ópera introdutória em um único ato.

Richard Wagner é uma das figuras mais importantes do mundo da arte. Foi o primeiro "estudioso" da obra de Schopenhauer, e, na finalidade de criar a obra de arte suprema, criou uma música dramática e uma literatura musical. Sua biografia é um capítulo a parte: era anti-semita em igual nível que amigo de judeus influentes; criou uma monumental casa de ópera em Bayreuth chamada Bayreuth Festspielhaus; foi exilado; foi amigo de Nietzsche e posteriormente inimigo ferrenho deste. Muitos o consideram um ser humano despresível, entretanto, após Wagner não foi mais possível fazer música ou literatura como se Wagner não existisse. Bem ou mal, ou consideram a obra wagneriana como a coisa mais genial do mundo, ou como a mais abusiva. 8 ou 80.

A história do Anel dos Nibelungos precede Wagner, e é a história mais influente de toda a cultura Nórdica ou Teutônica. A lenda do anel conta a história de Sigurd (para os Nórdicos) ou Siegfried (para os Teutônicos). Essa lenda faz parte da cultura religiosa destes povos, e é representada por escrito em diversos manuscritos medievais, dentre eles as Pedras Rúnicas da Suécia, o Livro de Edda da Islândia e o Nibelungenlied da Alemanha. A presença da lenda na cultura popular e erudita é absurda, possuindo óperas (estas e uma outra chamada Sigurd), filmes, livros, poesias, entre outras influências, como em O Senhor dos Aneis, Cavaleiros do Zodíaco (há um personagem chamado Siegfried) e Walkyrie Profile (há o Anel dos Nibelungos no jogo). A versão wagneriana da lenda é uma obra tão singular (até mesmo em comparação com as outras versões da história) que é um original por si só. As modificações no mundo da música são muitas, desde a criação do leitmotiv, da unidade do texto (não mais divididos em recitais, árias, duetos e etc...), a massificação orquestral, o supervirtuosismo vocal entre outras, o que rendeu à essa ópera a alcunha de "absurdamente exagerada" (principalmente à segunda).

Literariamente (o que nos interessa mais nesse blog), Wagner começa sua ópera no roubo do ouro do reno pelo nibelungo Alberich, ouro esse que se dele for forjado um anel, o portador será dono do mundo (lembra o Um Anel não?). O ciclo fecha-se com a morte de Siegfried (que só aparece da terceira ópera até a quarta), diferente do Nibelungenlied, que inicia-se com Siegfried em seu melhor estado e termina muito depois de sua morte. O Das Rheingold encerra-se quando Fafner mata seu irmão e pega o anel. Das Rheingold é uma peça introdutória, que explica os acontecimentos anteriores os da narrativa em si, que têm como protagonistas Siegmund, Brünnhild e Siegfried. Os principais personagens de Das Rheingold são os deuses Wotan e Loge, o nibelungo Alberich e o gigante Fafner (posteriormente dragão).

Das Rheingold começa com um lento prelúdio representando o movimento do reno. Não é o melhor prelúdio de Wagner, mas não chega a ser ruim. Em seguida aparece a cena das ninfas brincando, chega Alberich, que dá em cima das ninfas. Elas ignoram o nibelungo feio, que fica com raiva, renega o amor e rouba o ouro do reno. Não há nada de muito especial nesta cena. A música é legal, mas não há toda a emoção vocal, e a cantada de Alberich é extremamente sem graça. O melhor Alberich (se vos interessar) na minha opinião é Neidlinger, que aparece na versão de Solti (regente). Lastimavelmente, o Alberich de Karajan (Kelemen) não é o forte dessa gravação, mas, ainda prefiro a gravação de Karajan sobre qualquer outra, e a justificativa vem a partir da segunda cena.

Segunda cena: uma Ochesterzwischenspiel bela, e em seguida aparece Wotan, o deus dos deuses, dormindo. Fricka surge e acorda-o. Essa cena tem uma expressividade dificilmente vista em qualquer outra obra teatral. Os gigantes estão construindo o palácio de Wotan, que como pagamento, cederá Freia para os gigantes que construiram o castelo (Fafner e Fasolt, este ultimo, apaixonado pela deusa). Wotan planeja enganar os gigantes com a ajuda de Loge. Entretanto, o plano não sai como deveria. Os gigantes tentam pegar Freia a força e quase se envolvem em uma briga pesada com os irmãos da moça (Donner e Froh). Loge aparece e hipocritamente afirma que não prometeu salvar Wotan desse impasse, mas sim PROCURAR um modo para isso, o que disse que não conseguiu (Mit höchster Sorge/rauf zu sinnen,/wie es zu lösen,/das - hab ich gelobt./Doch daß ich fände,/was nie sich fügt,/was nie gelingt,/wie ließ’ sich das wohl geloben?). Loge estava com a intenção de enganar os deuses, e ele, como semideus, não necessita da fruta dos deuses que apenas Freia pode colher. Loge passa a perna em todos, brilhantemente. Segue-se então uma eloquente discussão, e Wotan deve cumprir sua palavra. Nesta cena segue também a melhor parte (musicalmente falando) de toda a obra, que é o monólogo de Loge intitulado Immer ist Undank Loges Lohn! (A ingratidão sempre é a recompensa de Loge). Esse monólogo é irônico, mal intensionado, longo e profundo. O melhor Loge é, sem dúvida nenhuma, o de Karajan. A voz que Karajan encontra para Loge combina perfeitamente com o papel, e é de uma hipocrisia e ironia impressionante. Depois do Loge de Karajan, Erin Caves é a minha segunda performance favorita, embora não tenha a ambiguidade e expressividade sínica do outro Loge, sua voz é muito mais bela e poderosa, e sua interpretação de palco não deixa a desejar.



Depois desse monólogo, Fafner decide substituir o pagamento (Freia) por outro (o anel roubado por Alberich), levando Freia como garantia. Sem opção, Wotan decide pegar o anel e dar para os gigantes, e deve fazer o quanto antes, pois sem Freia a vida dos deuses vai ser muito difícil.

Chega a terceira cena. Alberich escravisou os outros nibelungos, inclusive seu irmão Mime (será uma figura importante em breve). Alberich está de posse de um elmo que lhe deixa invisível (lembra o Um Anel não?) e lhe permite transformar-se em outra coisa, com a finalidade de "vigiar sem ser vigiado" (preciso falar mais algo?). Orquestralmente, a terceira cena é demais. A história se passa dos deuses Wotan e Loge enganando, capturando e tomando o Anel de Alberich. Algumas partes são brilhantes como a da entrada dos deuses. A tomada do anel e a longa maldição de Alberich (antes de ser libertado) também é genial, musical, teatral e literariamente.O monólogo de Alberich (Die in linder Lüfte Wehn) pode ser baixado clicando aqui.

A terceira cena também é bem dramática. Wotan se recusa a dar o anel, mas entrega, e há uma briga entre os gigantes, onde Fafner mata seu irmão. Percebe-se aí a influência da maldição rogada por Alberich, que permeará toda a obra, tendo o seu ápice em Götterdämmerung.

O mito do Anel dos Nibelungos possui uma grande importância e influência em toda a cultura alemã e é muito forte na cultura ocidental geral. Wagner dá uma nova visão desse mito, e possui uma beleza singular. Em Das Rheingold ainda não aparecem as grandes modificações que virão surgir na versão wagneriana do mito, mas é muito importante de ser ouvido, assistido e/ou lido, pois introduz uma série de coisas importantes para a obra em geral, como a maldição de Alberich, a presença de Mime e a própria história e poder do anel do ouro do Reno. Por ser uma resenha especial, não haverá nota nem edição lida.

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

domingo, 6 de março de 2011

A Morte em Veneza - Thomas Mann

Demorei para postar essa resenha por apenas um motivo: não queria ser o primeiro do DL a postar... Acho que já falei o suficiente de Thomas Mann no post anterior, então, acho que posso me ater ao livro somente.

Morte em Veneza é considerada uma das obras primas de Mann, e alguns consideram o melhor livro escrito em alemão. É fácil dizer o motivo: o livro é impressionante. Mann descreve as emoções e sentimentos dos personagens de uma forma única. A história do livro, apesar de aparentemente simples, revela-se sublime. Há no livro uma infinidade de detalhes, entretanto, nenhum deles pode ser retirado da narrativa. Tudo na obra é essencial.

O livro conta a história do artista Gustav Aschenbach (ou Von Aschenbach), que decide tirar férias em Veneza, onde encontra um jovem polonês (Tadzio, diminutivo de Tadeus) belo, por quem se apaixona. Ao final do livro (como o próprio nome sugere), Aschenbach encontra sua morte. A Morte em Veneza é, sobretudo, um protesto em favor da beleza, do amor à beleza. Thomas Mann faz em seu livro, assim como muitos escritores de língua alemã (como Rilke, Goethe, Schiller e Hölderlin), um tratado sobre a filosofia da arte, assim como sobre a natureza do belo.

A caracteristica mais marcante do livro é a sinestesia. Os sentidos estão todos jogados no livro, correspondem, brigam, matizam-se. A obra, alem de textual, é extremamente visual, nos permitindo VER o que acontece de forma singular, além de ser uma obra muito musical, nos fazendo OUVIR o que se passa, as vozes, o movimento do mar. Os sabores e os cheiros também são fortíssimos na obra, mas não superam a musicalidade e visualidade.
O sol queimava-lhe o rosto e as mãos, o ar salino fortalecia-lhe o sentimento; e, assim como antes aplicava de imediato numa obra todo o descanso que lhe proporcionava o sono, a alimentação ou a natureza, assim deixou agora tudo o que o sol, a ociosidade e o ar marinho lhe davam em cotidiano fortalecimento consumir-se, magnânimo e desgovernado, em êxtase e sentimento. [...] O maravilhoso acontecimento [o primeiro clarão do dia] enchia de veneração sua alma enlevada pelo sono. Ainda o céu, a terra e o mar estavam envolvidos na fantástica, vítrea palidez da madrugada; ainda pairava uma estrela apagada no espaço. Mas vinha um sopro, uma notícia alada de residências inatingíveis, de que Eros se erguia do lado de seu esposo, e então aparecia aquele primeiro doce enrubrescer da faixa mais distante do céu e do mar, anunciando o sensualizar da criação. (p.139)
Além da sinestesia da obra, A Morte em Veneza é cheia de pequenos detalhes e reflexões que são importantíssimas, que misteriosamente criam um livro complexo e denso, porém, divertido de se ler. É importante notar na obra a relevância que o ambiente (cenário) tem para o sentido do texto. Há também no livro uma incessante busca pela descoberta da auto-identidade do heroi, que é conflitante. Por um lado, o heroi é moral, por outro ele ama o que é belo, que aparece na figura de um garoto polonês (lembre-se que isso é Homossexualidade e Pedofilia, que eram inadmissíveis na decada de 20).

Muito interessante como o desfecho da obra é formulado. A narrativa termina quando Aschenbach e Tadzio estão prestes a se separar. A morte é apenas um prolongamento de um único período (o último do livro): "E, ainda no mesmo dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte". A morte surge em A Morte em Veneza como resolução de todos os conflitos internos e obstáculos de sua pequena epopeia, como a salvação para o dilema do amor ao belo e da separação. Lembra-me Aquiles, para o qual a morte significou a imortalidade. Aschenbach morreu amando o belo, sendo um homem moral, e sem separar-se de seu afeto. É o fim de sua descoberta identitária e de tudo o que o afligia.

Por fim, segue uma passagem do livro, profunda em sua simplicidade, que gostei muito e desejo compartilhar.
A felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento; é o sentimento que consegue tornar-se todo pensamento. Um pensamento palpitante como este, um sentimento tão exato, pertencia e obedecia ao solitário, naquela ocasião: isto é, que a natureza estremece de prazer quando o espírito se curva em adoração perante a beleza. Repentinamente desejou escrever. Na verdade, Eros ama a ociosidade, assim dizem, e só é criado para isto. [...] O assunto lhe era familiar, lhe era experiência; seu desejo de deixá-lo acender-se na luz de sua palavra tornou-se irresistível. E, na verdade, seu anseio era trabalhar na presença de Tadzio, e, escrevendo, adotar a figura do menino como modelo, deixar seu estilo seguir as linhas deste corpo que lhe parecia divino, levar sua beleza para o espiritual, como outrora a águia carregara o pastor troiano para o éter. Nunca sentira mais doce o prazer da palavra, nunca soubera que Eros estava assim na palavra, como nas horas perigosas e deliciosas, durante as quais, sentado em frente à rude mesa sobre o toldo, ne presença de seu ídolo e a música de sua voz nos ouvidos, formava uma pequena dissertação, de acordo com a beleza de Tadzio - aquela página e meia de escolhida prosa, cuja integridade, nobreza e ondulante tensão de sentimento dentro em pouco exaltaria a admiração de muitos. Por certo é bom que o mundo só conheça as belas obras sem conhecer suas origens e condições de formação, pois o conhecimento das fontes que serviram de inspiração ao artista muitas vezes o desconcertaria, desalentaria e assim anularia os efeitos do que é excelente. Estranhas horas! Estranha fadiga enervante! Estranha comunicação criadora do espírito com um corpo! Quando Aschenbach guardou seu trabalho e deixou a praia, sentiu-se esgotado, desconcertado mesmo, como se a sua consciência lhe fizesse queixas depois de uma digressão. (p.137)
 Essa resenha faz parte do Desafio Literário. Para conferir a minha lista do desafio clique aqui. Para conferir a lista de Março Clique aqui. Atualmente, Morte em Veneza é publicado pela Nova Fronteira, e é de fácil acesso em livrarias. A edição da Abril só é encontrada em sebos.

Nota do Elaphar: 9,8

Edição Lida:
MANN, Thomas. Tônio Kroeger & A Morte em Veneza. Trad: Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 170p

quarta-feira, 2 de março de 2011

Tônio Kroeger - Thomas Mann

Agora que vim perceber que esse é o primeiro livro de Literatura Alemã que posto no Blog , e não consigo compreender como nunca resenhei um alemão. Thomas Mann é um dos maiores escritores do séc XX. Filho de um alemão com uma brasileira, teve como irmão o também escritor Heinrich Mann. Ganhou o Prêmio Nobel e foi cassado durante o período nazista. Criou o maior livro que tenho em minha biblioteca (A Montanha Mágica), com 1000 páginas em papel pólem.

Tônio Kroeger, ao meu ver, tem um certo ar de autobiografia de Mann. Kroeger (ou Kröger) é um burguês que sofre por ser fora do comum (escreve versos); sua mãe e seu nome são estrangeiros (assim como Mann). Há também uma tendência homossexual na infância de Kroeger para com seu amigo Hans (lembrando que Mann possuia tendências homossexuais que odiava).

Tônio Kroeger é um livro que mostra os complicados conflitos do ser humano, de sua infância, adolescência e fase adulta. Também é um tratado sobre arte, pois, as reflexões de Kroeger sobre a arte e a vida são profundíssimas, e só perdem para as de Rainer Maria Rilke (em breve resenharei algo sobre esse escritor, pois esse mês é alemão... Gott schütze Deutschland). Os detalhes e estados de espírito são mais importantes do que os acontecimentos em Tônio Kroeger.

Tônio Kroeger é um livro simples, porém profundo, escrito com maestria e possui uma temática interessante e criativa. O livro me cativou muito devido minha grande afinidade com o melancólico personagem principal (acho que sou algo entre Kroeger de Mann e Meursault de Camus). O livro é curto e pode ser lido e relido em pouco tempo.

Nota do Elaphar: 9,2

Edição Lida:
MANN, Thomas. Tônio Kroeger & A Morte em Veneza. Trad: Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 170p
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