segunda-feira, 28 de março de 2011

Livro dos Juízes - Anônimo

(Ilustrações de Gustave Doré [em domínio público])
Ia resenhar o Nibelungenlied, mas optei por não fazê-lo, pois, já estou resenhando o ciclo wagneriano e não quero falar novamente da mesma história (embora haja diferenças). Vou resenhar um dos livros que faz parte da maior compilação épico-religiosa judaica que é o Neviim. Conhecemos esse livro (com outros mais) como o Antigo Testamento Cristão.
Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Juízes como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os Juizes, Heróis, chefes invasores e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
O primeiro grande ponto a refletir é referente à autoria do livro. A teologia tradicional afirma que Juízes fora escrito por Samuel (ultimo juiz de Israel e primeiro profeta). Durante muito tempo acreditei nessa versão, e considerava o Juízes como o livro mais antigo da bíblia (levando-se em consideração que Moisés não escreveu o Torá e Josué não escreveu o Livro de Josué). Há entretanto uma problemática: O livro de Juízes possui em alguns momentos (que provavelmente falarei em breve) grande influência do texto Javista, e portanto, dificilmente poderia ter sido escrito antes (o que desloca o livro para uma época posterior ao reinado de Salomão, ou seja, após 930a.c). A hipótese documental sugere que Juízes tenha sido compilado na tradição/documento Deuteronomista, com algumas fontes anteriores (Javistas ou Eloístas), o que é bastante plausível, pois, como disse anteriormente, há uma influência (no plano LITERÁRIO) javista no texto. A segunda grande problemática é referente à tradução bíblica, mas não me deterei nesse ponto.

O Neviim, assim como parte do Torá, é a grande compilação épica do povo hebreu, sendo composta por vários livros escritos por vários autores, cada um narrando os acontecimentos de determinado período. O Livro de Juízes (ou "dos Juízes") conta a história do povo a partir das conquistas após a morte de Josué (Yehoshua), até pouco antes do surgimento do último Juiz de Israel (Samuel) e do primeiro reinado (Saul). Portanto, Juízes narra a história de 13 dos 14 juízes (o número 14 é quase místico nos livros sagrados), e é importante perceber que não havia rei em Israel, além de que fé em Deus não era "regulamentada" (os livros sagrados surgiram posteriormente), pernetcendo à tradição oral. Era um período de anarquia moral, política e religiosa.

Juízes mantém um padrão de repetição narrativa: 1-Deus dá a graça ao povo, 2-as próximas gerações esquecem o Acordo com Deus, 3-o povo cultua outros deuses, 4-Deus castiga o povo com as invasões dos inimigos, 5-o povo ora a Deus pedindo a salvação, 6-Deus dá um lider forte para combater os invasores (esses líderes chamam-se Juízes), 7-o povo é libertado. Após a libertação do povo, o ciclo retorna, isso praticamente a cada vez que os juízes surgem. Há várias representações de Deus em Juízes: Deus ora é vingativo, ora piedoso, ora humano (uma possível influência Javista). Israel é um povo que peca e é punido por seus pecados, por um deus mutável, mas é libertado por seu deus e seus heróis. Uma coisa que é interessante no livro: Deus pune seus filhos de Israel por crer em outros deuses fazendo-os ser vencidos pelos inimigos que crêem nesses deuses.

O livro começa contando o que acontece após a morte de Josué e como os hebreus venceram os cananeus com a ajuda de Javé. Depois da vitória, o povo esquece a Aliança e um anjo surge para revelar a ira divina. Há uma digreção, onde o livro conta novamente a morte de Josué e o que ocorreu depois. Isso é um indicativo de que esse livro foi escrito por pessoas diferentes e/ou compilados em tradições diferente. Há uma revelação diferente da anterior (1:1 até 2:4), onde o escritor afirma que a geração subsequente seguiu a Aliança e as posteriores esqueceram e abandonaram Javé. Aí começa o sofrimento do povo israelita. O capítulo 2 (do versículo 11 a 22) é um sucinto resumo do livro, que mostra as etapas recorrentes desse período histórico de Israel (passos 1 a 7 lá em cima). Assim surge o primeiro juíz da tribo de Judá chamado Otoniel. Depois do esquecimento, idolatria e punição, os israelitas oram para Javé pedindo a salvação, e Javé manda Otoniel que venceu o rei da Mesopotâmia, e a paz reinou enquanto Otoniel viveu.

Depois da repetição do ciclo, o próximo juíz foi Aod (ou Eúde, da tribo de Benjamim), que assassina o rei moabita e seu exército. O próximo juíz é Samgar (ou Sangar), que mata seiscentos filisteus com uma vara de tocar bois. Há apenas quatro linhas sobre Samgar, além dele ser o Juíz mais divergente dos outros, pois ele surge em continuidade à Aod e não liberta plenamente os israelitas. Além do mais, o vercículo seguinte (4:1) simplesmente desconsidera que Samgar existiu, como se o líder subsequente a Aod fosse Débora.
E chegamos em Débora, dentre os juízes, a minha preferida. Depois do ciclo (esquecimento, punição, redenção e salvação), Débora é a próxima (4ª) juíza, que salvará Israel. Débora (da tribo de Efraim) chama Barac (ou Baraque, da tribo de Naftali), para que o herói liberte o povo. O diálogo entre Débora e Baraque lembra muito o diálogo entre Javé e Moisés, onde Débora é autoritária e seca, e Baraque um pouco receoso. Baraque não confia plenamente, e diz que só vai se Déboa for. Possuindo o controle da situação, e não feliz com a desconfiança, afirma que irá, mas que Baraque não terá a glória de matar Sísera (opressor da vez) será dada a uma mulher, e assim acontece, pois, apesar da vitória, quem mata Sísera é Jael. Em seguida há a famosa Canção de Débora e Baraque, que é bela, bélica e sinistra. Se você acompanhou até aqui, deu para perceber que o Livro dos Juízes é ao mesmo tempo heróico, belo e violento, pois todo o período relatado é de infindáveis combates, e muitas mortes de inimigos são descritas de forma alegre e violenta (acho que não falei que Jael matou Sísera dormindo com uma estaca na fonte). Não se preocupe, há muito mais no livro que pode surpreender...

Mais uma vez o ciclo se repete, e dessa vez Javé faz os midianitas atacarem e oprimirem os filhos de israel. Gideão (da tribo de Manassés) é o novo juíz selecionado por Javé, que envia um anjo para falar-lhe, e mais que isso, conversa com ele pessoalmente (o que lembra muito a tradição Javista, onde Javé é bastante humano e conversa pessoalmente com Moisés e Abraão po exemplo). É importante observar que Gideão não é membro importante da sociedade. Gideão é medroso e prudente ao início, pedindo várias provas à Javé e sem confiar em todas elas plenamente, mas após perceber que Javé está com ele, se torna violento e autoritário, punindo os que não o ajudam. Gideão também é um orador genial, conciliando e liderando os israelitas com maestria. De todos os juízes do livro, Gideão é o que mais lembra Moisés, e o texto de Gideão é o que mais lembra o Torá Javista (embora Débora se pareça com o próprio Javé).

Após Gideão, temos seu filho bastardo Abimeleque (que não é juíz), que mata todos os filhos de seu pai e anseia liderar Israel, mas é amaldiçoado por Jotão e punido por Javé. É uma passagem muito violenta, mas nem se compara com a de Jefté e a do Levita e sua concubina. Após a passagem de Abimeleque, temos mais dois Juízes: Tolá (da tribo de Isacar) e Jair (da tribo de Manassés), e após os dois juízes, Javé se cansa do ciclo vicioso, e decide parar de ajudar Israel, entretanto, tem pena e envia o próximo juíz Jefté (da tribo de Manassés), o 8º juíz de Israel (essa sequência se repetiu 6 vezes).

Jefté não é um juíz tão interessante quanto Débora e Gideão, apesar de ser filho bastardo, o que mostra um Javé sem preconceitos. Apesar da falta de carisma de Jefté, em sua narração é que aparece uma das cenas mais cruéis do livro:
CAP:11
30.E Jefté fez um voto ao SENHOR, e disse: Se totalmente deres os filhos de Amom na minha mão,
31.Aquilo que, saindo da porta de minha casa, me sair ao encontro, voltando eu dos filhos de Amom em paz, isso será do SENHOR, e o oferecerei em holocausto. [...]
34.Vindo, pois, Jefté a Mizpá, à sua casa, eis que a sua filha lhe saiu ao encontro com adufes e com danças; e era ela a única filha; não tinha ele outro filho nem filha.
35.E aconteceu que, quando a viu, rasgou as suas vestes, e disse: Ah! filha minha, muito me abates-te, e estás entre os que me turbam! Porque eu abri a minha boca ao SENHOR, e não tornarei atrás.
36.E ela lhe disse: Meu pai, tu deste a palavra ao SENHOR, faze de mim conforme o que prometeste; pois o SENHOR te vingou dos teus inimigos, os filhos de Amom.
37.Disse mais a seu pai: Conceda-me isto: Deixa-me por dois meses que vá, e desça pelos montes, e chore a minha virgindade, eu e as minhas companheiras.
38.E disse ele: Vai. E deixou-a ir por dois meses; então foi ela com as suas companheiras, e chorou a sua virgindade pelos montes.
39.E sucedeu que, ao fim de dois meses, tornou ela para seu pai, o qual cumpriu nela o seu voto que tinha feito; e ela não conheceu homem; e daí veio o costume de Israel,
40.Que as filhas de Israel iam de ano em ano lamentar, por quatro dias, a filha de Jefté, o gileadita.
(BÍBLIA ALMEIDA CORRIGIDA E REVISADA FIEL)
Mais uma vez, vemos uma influência javista, que se interessava pela explicação dos mitos e dos nomes. Achou a passagem triste e/ou cruel? Tem outra mais grave, mas antes vamos falar dos outros juízes: Ibsã (ou Abesã, da tribo de Judá), Elom (ou Elon, da tribo de Zebulom) e Abdom (ou Abdon, da tribo de Efraim), que governaram por pouco tempo e pouco se fala sobre eles no livro. O juíz seguinte, é o último dos juizes do livro, e o mais famoso também: Sansão.
Passei a minha infância toda ouvindo a história de Sansão, que é o herós mais famoso da bíblia (ao lado de Moisés e Davi). Possui milhares de adaptações infanto-juvenis e cinematográficas (incluindo uma minissérie recente), além de infindáveis referências na cultura popular (até na Turma da Mônica). Apesar de tudo, não gostei (na leitura de Juízes) tanto de Sansão quanto de Débora ou Gideão, mesmo a representação bíblica de Sansão ser a mais expressiva que ja ví na minha vida. Sansão surge de um milagre (sua mãe é não pode ter filhos), e possui desde antes do nascimento um voto de nazireu, onde não podia cortar os cabelos nem beber ou comer algo feito de uvas. A força de Sansão não está nos cabelos, como costumamos aprender. A força vem de Javé, que a concede quando é preciso, mas somente se Sansão cumprir o acordo.Após o corte do cabelo, a força não volta devido o cabelo ter crescido, mas sim devido Sansão implorar a força mais uma vez e Javé conceder (apesar do livro citar que o cabelo havia crescido).

Mais pontos sobre Sansão: Javé o guia para a casa dos filisteus, que oprimem o povo, e incita um amor por uma filistéia. Após a traição, Sansão fica irritado, e para cumprir a aposta (das vestes) mata 20 filisteus com o auxílio da força de Javé. Depois agarra bestas e queima as plantações filistéias (novamente com a graça de Javé), e após acontece a célebre passagem onde Sansão mata mil filisteus com uma queixada de jumento e canta alegremente: "Com uma queixada de jumento eu os amontoei, com uma queixada de jumento, mil homens eu matei"(BÍBLIA EDIÇÃO PASTORAL). Essa passagem também me lembra o documento Javista (devido explicações etimológicas do nome dos lugares). Até então Javé estava guiando (alguns diriam: manipulando) os passos de Sansão, mas em seguida algo incomum acontece. Sansão vai à Gaza procurar uma prostituta para com ela ter relações pouco judaicas, que ele provavelmente não poderia fazer em sua tribo (Dã). É a primeira vez que não se fala que Sansão foi guiado por Javé, e quando arranca os portões da cidade, pela primeira vez Sansão usa sua força sem antes Javé concedê-la diretamente. Além disso, essa passagem sempre é modificada em adaptações infanto-juvenis ou cinematográficas, por incomodar.
E tem a Dalila (ou Dalilah), que é a personagem mais injustiçada desse livro, seja pelo bem ou pelo mal. Já ví várias versões de dalila: interesseira, pobre, sentida, arrependida, conflituosa (amor à Sansão x amor ao povo) e etc... Todas elas são falsas. Dalila é simplesmente uma filistéia, por quem Sansão se apaixona, e por ser inimigo de seu povo procura derrotar e é recompensada por isso. Ponto final.

Após a morte do último juíz, a anarquia fica ainda mais forte, onde as tribos de Israel entram em combate uns contra os outros e há várias passagens e fatos. É importante que o livro procura esclarecer que Israel NÃO TINHA REI (quase uma apologia à monarquia, o que justificaria bem a tese de que Juízes fora escrito no pós-exílio). Para finalizar, mostro a outra passagem assustadora do livro:
CAPÍTULO 19
22.Quando estavam entretidos, alguns vadios da cidade cercaram a casa. Esmurrando a porta, gritaram para o homem idoso, dono da casa: "Traga para fora o homem que entrou na sua casa para que tenhamos relações com ele! "
23.O dono da casa saiu e lhes disse: "Não sejam tão perversos, meus amigos. Já que esse homem é meu hóspede, não cometam essa loucura.
24.Vejam, aqui está minha filha virgem e a concubina do meu hóspede. Eu as trarei para vocês, e vocês poderão usá-las e fazer com elas o que quiserem. Mas, nada façam com esse homem, não cometam tal loucura! "
25.Mas os homens não quiseram ouvi-lo. Então o levita mandou a sua concubina para fora, e eles a violentaram e abusaram dela a noite toda. Ao alvorecer a deixaram.
26.Ao romper do dia a mulher voltou para a casa onde o seu senhor estava hospedado, caiu junto à porta e ali ficou até o dia clarear.
27.Quando o seu senhor se levantou de manhã, abriu a porta da casa e saiu para prosseguir viagem, lá estava a sua concubina, caída à entrada da casa, com as mãos na soleira da porta.
28.Ele lhe disse: "Levante-se, vamos! " Não houve resposta. Então o homem a pôs em seu jumento e foi para casa.
29.Quando chegou em casa, apanhou uma faca e cortou o corpo da sua concubina em doze partes, e as enviou a todas as regiões de Israel.
(BÍBLIA NOVA VERSÃO INTERNACIONAL)
Nada mais tenho a declarar quanto à história.

Gostei muito de ler o Livro de Juízes (para falar a verdade, várias vezes já havia iniciado, mas nunca terminava), e é um dos maiores textos literários contidos na grande compilação que os cristãos chamam Bíblia. Não é tão interessante quanto as passagens do torá da tradição Javista, mas possui muitos personagens bons (dentre eles, Débora e Gideão, que são os meus preferidos), e é uma das melhores representações do humano, divino e heróico, digno de figurar ao lado de Homero e Virgílio. Não é a toa que a Bíblia Cristã é o maior best-seller de todos os tempos, e o livro que mais influenciou o pensamento ocidental positiva (como Dante, Camões, Descartes e etc..) ou negativamente (como Nietzsche, Saramago e etc...). O livro de juízes inspirou diretamente infindáveis obras artísticas, dentre elas a famosa Samson et Dalilah de Camile Saint-Säens e as ilustrações de Gustave Doré que ilustram minha resenha. Não vou colocar a edição lida, pois li diretamente a NTLH (que é poéticamente pobre), cotejando-a com a Almeida Corrigida e Revista Fiel, Edição Pastoral, Nova Edição Internacional e na versão do Rei James (olhada uma vez ou outra). Não quero entrar no mérito das traduções brasileiras (apesar de a não diferenciação de Eloah e Yahweh estar presente em muitas edições). A nota que segue trata-se do Livro de Juízes COMO TEXTO LITERÁRIO!!! Não estou colocando o mérito religioso, pois cada um julga o valor espiritual que esse livro tem. Julgarei apenas o valor literário que EU considero, a partir de minha tradição de leituras literárias.

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

Nota do Elaphar: 9,0

2 comentários:

  1. Adorei a escolha. Se soubesse que podia constar como épico, teria feito uma resenha também, pois li Juízes semana passada. Estou em 1 Samuel agora. Já leste Apocalipse? Estou relendo pela segunda vez.

    Beijocas
    Vivi

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  2. Podemos considerar a obra "Juízes" como épico na medida que o retiramos do plano da fé e o colocamos no plano da arte. É por certo uma literatura épica, se considerarmos-o como literatura. Como livro sagrado é puramente um dogma.

    Samuel é muito bom, e fala sobre o período pós-anárquico descrito em Juízes. Quanto ao(s) apocalípse(s), já li ambos (o de João e o de Daniel). Se puder lhe indicar alguns livros da compilação bíblica, lhe recomendo Esdras e os fragmentos da tradição Javista do Pentateuco (isso segundo a ipótese documentarista).

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